sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Cristóvão, PDA 88


            Em dezembro de 1987, comprei meu primeiro Jornal dos Sports. À época eu não sabia, mas a caminhada do moleque de 11 anos, por iniciativa própria, até a banca do Seu Lupércio, naquela distante manhã nublada, era um momento histórico, o início de um contato mais profundo entre o pequeno torcedor e a imprensa esportiva escrita. Eu já tinha certa intimidade com o rádio (José Carlos Araújo narrando o gol de Tita na final do Carioca de 87, um marco...), mas com os periódicos a proximidade começava ali. Naquela edição do velho jornal cor-de-rosa, alguns jornalistas elegiam a seleção JS do campeonato brasileiro daquele ano, a famosa Copa União. Aquilo despertou em mim alguma espécie de fascínio, que até hoje cultivo. Resolvi que também eu escalaria um onze ideal da competição, tarefa que estendi a todos os Brasileirões que acompanhei posteriormente.

            Um trabalho solitário, compartilhado durante anos com quase ninguém. Talvez eu tenha confidenciado algo ao Fábio, grande amigo de infância. Ou ao Leo, meu primo, que, avesso a futebol, acusava-me de decorar o conteúdo das edições de Placar só para ficar exibindo conhecimentos futebolísticos depois. Mas, ainda que eu tenha revelado algo a eles, não dividi o trabalho. Minucioso trabalho, diga-se. Cheguei ao requinte aparentemente doentio de dar um nome ao “prêmio” ignorado por toda a humanidade. Se a Placar, como eu descobriria poucos meses depois daquele verão 87/88, tinha a sua Bola de Prata, eu teria o PDA. Prêmio Danilo Alvim.

            Mas por que cargas d’água Danilo Alvim? O leitor deste blog há de conhecê-lo. Trata-se do Príncipe, center-half do Expresso da Vitória e titular na Copa de 1950. Eu já lera a respeito da nobreza de sua estirpe e achei que, com seu nome, o “cobiçado laurel” ganhava peso.

            Como em 87 a ideia surgiu somente depois da decisão do certame nacional, foi em 88 que as escolhas do PDA passaram a ser frutos de observações mais detidas ao longo de todo o campeonato. A essa altura, eu já me tornara um ávido leitor de Placar, e era natural que as notas dadas pela revista aos concorrentes da Bola de Prata influenciassem os meus conceitos pré-adolescentes, numa época muito anterior à onisciência do PFC. No entanto, eu apreciava manter a independência do prêmio por meio de algumas firmes discordâncias. Por isso, se endossei a Placar na zaga, por exemplo (Aguirregaray, do Inter, e Pereira do Bahia), dela me desviei nas pontas (Robertinho e Edivaldo nos lugares de Vivinho e Zinho!). Uma das outras diferenças entre as minhas opções e as da Placar residiu no meio-campo: eu escalei Cristóvão (Grêmio) na cabeça-de-área, posição que teve Paulo Rodrigues (Bahia) como Bola de Prata.

            Na verdade, Cristóvão jogava como segundo homem numa região central gremista habitada ainda por Bonamigo e Cuca. Mas, como eu não queria abdicar de Geovani, recuei Cristóvão para o posto de volante. O meia do tricolor gaúcho também não podia ficar de fora – eu me convencera disso ao assistir na TV a Flamengo 0x1 Grêmio, pelas quartas-de-final, no início de 1989 (sim, o Brasileirão de 88 terminou no ano seguinte). Elegante, clarividente e operário, naquela noite Cristóvão se multiplicou com leveza e agilidade no gramado do Maracanã. Uma atuação que ajudou o garoto de 12 anos a moldar sua definição de meio-campista.

            O Grêmio tombaria nas semifinais para o maior rival, naquele que ficaria conhecido como o “Grenal do século”, mas a impressão que Cristóvão me deixara nas quartas garantiu-lhe uma vaga no escrete do PDA. Sebastião Lazaroni, então técnico da seleção, também deve ter gostado das performances do meia, já que o convocaria, poucos meses depois, para a Copa América.

            Depois da passagem pela Portuguesa, já em fim da carreira, Cristóvão sumiu do meu modesto mapa. Eu só voltaria a ouvir falar dele no fim de julho de 2011, dias depois do grave problema médico de que Ricardo Gomes se acometera. Eu estava na loja de ferragens do portuga Luís, point de notícias cruzmaltinas mais férvido que sites especializados. Angustiado, indaguei:

            − E quem vai entrar no lugar do Ricardo, por enquanto?

            − É o auxiliar dele, o Cristóvão − respondeu o filho do lusitano −, um ex-jogador aí, acho que do Fluminense...

            − Ah, sei... Jogou no Grêmio, né?

            De fato, era ele, o volante improvisado do PDA 88. Simples, discreto, sereno, salário bem menor que os dos figurões do ofício, Cristóvão foi aplacando minha desconfiança inicial. E fui reconhecendo, na desenvoltura e na lucidez peculiares à sua forma de se expressar, a mesma habilidade, a mesma inteligência que eu vira pela TV, num Flamengo x Grêmio do passado.

            Com Cristóvão, o Vasco chegou pela primeira vez entre os cinco primeiros do Brasileirão neste século. Com Cristóvão, o Vasco chegou às semifinais da Sul-Americana, mesmo estando muito envolvido com o Brasileiro. Com Cristóvão, o Vasco fez uma ótima Libertadores, em seu retorno à competição após onze longos anos. Com Cristóvão, o Vasco se mantém entre os quatro primeiros do Brasileiro 2012, mesmo depois das terríveis perdas de Rômulo, Allan e, principalmente, Diego Souza e Fágner. O vascaíno já tem, portanto, motivos para acreditar que, com Cristóvão, o Vasco pode continuar disputando coisas grandes. É claro que a exasperação com uma ou outra mania (uma leve retranquite, Diego Rosa etc) sempre vai haver, isso é comuníssimo no comportamento da torcida. Mas xingar recorrentemente um técnico que vem, há quase um ano, contornando problemas e levando o Vasco para cima parece injustificável.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

De medalhistas a medalhões*


A seleção olímpica de 1988 jogou um futebol agradável de se ver e transformou alguns jogadores em ídolos nacionais


Em 1988, o futuro do futebol brasileiro era uma interrogação. O ocaso da geração de Zico, Sócrates e Falcão parecia indicar que os anos sem título mundial se multiplicariam. A bagunça do início do campeonato brasileiro daquele ano – alguns clubes contestaram o regulamento, que previa pênaltis em caso de empate – completava o cenário desolador. Era necessário que algo diferente e empolgante acontecesse. E aconteceu.

Sob o comando de Carlos Alberto Silva, a seleção olímpica ganhou a medalha de prata em Seul, praticando um futebol capaz de provocar, no Brasil, um entusiasmo equiparável ao de uma Copa do Mundo. E não era fogo de palha, não – apagada a pira de Seul, a chama daquela nova geração permaneceria viva, atingindo a temperatura máxima na final da Copa de 1994. Taffarel, Jorginho, Bebeto, Romário e Mazinho, que enfrentaram a Itália de Baggio em Los Angeles, tinham estado seis anos antes em Seul.

A qualidade desses jogadores explica, em parte, a espontânea e calorosa adesão popular à torcida pelo time de 1988. A outra parte da explicação fica por conta do contexto da época. Todos os integrantes da equipe defendiam, no primeiro semestre de 1988 (a Olimpíada começou em setembro), clubes brasileiros, o que facilitava a empatia. Além disso, não havia limite de idade para os convocados, portanto o time não se parecia tanto com uma “seleção de novos” quanto em outras Olimpíadas. Não ter participado de Mundiais era o único pré-requisito para ir aos Jogos.

Outro dado que talvez ajude a esclarecer por que tanta gente madrugou naquele já distante setembro tem a ver com a política. A promulgação da nova Constituição brasileira ocorreria quatro dias depois da decisão do futebol olímpico. A primeira eleição presidencial direta pós-ditadura se aproximava. Respiravam-se ares de redemocratização e esperança. Cada gol de Romário em Seul era comemorado no Brasil com uma inocência que, hoje, parece perdida.

Era outro tempo, sem dúvida. Um tempo em que reunir a seleção por quase três meses era possível. Entre amistosos e torneios, o time olímpico disputou doze partidas em sua longa e caótica preparação, que começou na Austrália e passou por Europa e Estados Unidos, antes de chegar à Coreia do Sul. Nesse meio tempo, o técnico Carlos Alberto Silva reclamou da escassez de informações sobre as seleções que o Brasil encararia na primeira fase da Olimpíada. A muito custo, ele havia conseguido, na Áustria, uma fita da Iugoslávia, mas sua transcodificação custava muito caro. Vinte anos depois, o problema tem cara de pré-história.

Mas nem tudo está tão diferente. A cessão de jogadores que atuam no exterior já era complicada. Valdo e Ricardo Gomes não foram liberados pelo Benfica, que exigiu garantias financeiras com as quais a CBF não quis arcar. A distância entre o futebol e as outras modalidades olímpicas também já existia – o Brasil disputou a primeira fase na cidade de Taejon (onde, segundo o ex-jogador Neto, comeu-se muito cachorro), e houve jogos das demais chaves em Taegu, Pusan e Kwangju, enquanto todos os outros esportes se fixaram em Seul.


Os “pratagonistas” do time


“Ele nunca soltava a bola errado”, lembra o técnico Carlos Alberto Silva. “Ele era o cimento da equipe”, metaforiza o preparador físico Bebeto de Oliveira. Ambos estão falando de Geovani, o capitão do time, que não chegaria a disputar nenhuma Copa, mas que, em 1988, desfrutou do status de maior craque do futebol brasileiro. Autor do gol que eliminou a Argentina nas quartas-de-final, o habilidoso meia tomou o segundo cartão amarelo na semifinal diante da Alemanha e desfalcou o Brasil na decisão contra a URSS, tal como o cabeça-de-área Ademir. “A ausência desses dois titulares foi crucial”, comenta Carlos A. Silva. “Tínhamos muito pouco tempo para treinar uma nova formação; o meio-campo perdeu um pouco a pegada”, arremata o treinador.

Se Geovani era o pilar do meio, atrás esse papel coube a Taffarel. “Existia um tabu de que goleiro só servia para a seleção depois dos 26 anos. Ali se consagrou um com 19”, diz o técnico, subtraindo três anos da verdadeira idade de Taffarel em 1988. O gentil equívoco talvez tenha sido uma inconsciente retribuição aos três pênaltis defendidos (um no tempo normal e dois após a prorrogação) na partida mais difícil e emocionante da campanha, frente à Alemanha de Hässler e Klinsmann.

Além de Taffarel, sobressaiu na defesa o zagueiro André Cruz, que completou 20 anos no dia da vitória sobre a Austrália, válida pela primeira fase. Nessa partida, assim como na seguinte, contra a forte Iugoslávia, Cruz atuou improvisado na lateral-esquerda. E foi dali que, diante dos iugoslavos, munidos de Katanec, Stojkovic e Suker, o ponte-pretano anotou um espetacular gol de falta, abrindo o marcador. Sua presença no torneio só não foi impecável devido ao deslize que ofereceu a Savichev uma clara chance de fazer 2 a 1 na prorrogação da final. O atacante soviético aproveitou bem, encobrindo Taffarel.

Na visão de Neto, o posto de destaque individual brasileiro em Seul fica dividido entre o loirinho gaúcho e um certo tampinha carioca, que fez sete gols na competição e despertou a cobiça de clubes europeus. “Romário é o melhor de todos os tempos, depois de Pelé”, opina o comentarista da TV Bandeirantes. Bebeto de Oliveira ressalta uma característica que o Romário mais maduro perderia: “O grande craque de anos depois não se comparava àquele menino, com aquela velocidade fantástica”.

Com tantos aspirantes a estrela, a vaidade atrapalhava? “Não, o ambiente era sensacional, embora eu não acredite muito nesse negócio de união”, avalia Neto, que via Andrade, o mais experiente do grupo, como um ídolo: “Eu tinha até vergonha de falar com ele”, conta. O volante flamenguista acabara de ser vendido ao futebol da Europa, destino comum a grande parte dos que foram aos Jogos Olímpicos de 88. Comparado aos padrões atuais, o êxodo foi tímido e lento, mas, até aquele desfecho de anos 80, não tinha havido nada igual.

Alguns medalhistas, como Andrade e Geovani, não tiveram sucesso no exterior, e outros bons jogadores acabaram não se firmando como figurinhas carimbadas, casos do zagueiro Batista, do meia Mílton e do atacante Careca. O saldo geral da geração Seul, porém, foi bastante positivo e confirmou o valor do trabalho de renovação desenvolvido por Carlos Alberto Silva. Só ficou faltando o ouro. O ponta João Paulo, que entrou no lugar de Bebeto durante a final, resume o que passou pela sua cabeça no pódio: “A sorte não ajudou. Tínhamos um time superior, pressionamos, perdemos gol. Na hora, foi uma grande decepção. Mas hoje a gente vê que a medalha de prata representou muito”.

*Escrevi esta matéria para a Revista Trivela, edição de agosto de 2008. A versão da revista está um pouco modificada e mais curta, devido à edição.

domingo, 22 de abril de 2012

"Ninguém encosta no Alves!"

Mourinho venceu o clássico ao deixar o lateral barcelonista livre


Procurei muito por estatísticas que me informassem o tempo de posse de bola individual durante “El clásico” de ontem. Não encontrei. Ainda assim, sou capaz de garantir que quem mais tocou na bola foi Daniel Alves. Não porque tenha se multiplicado em campo, em atuação primorosa. Longe disso. O brasileiro aparecia a todo instante com a pelota nos pés porque Mourinho quis assim.

Li trezentas crônicas sobre a partida, ouvi uma penca de comentaristas de TV e nada. Ninguém percebeu. Falou-se genericamente sobre uma nova forma de anular o Barcelona, supostamente descoberta pelo técnico português, mas ninguém notou que a tal marcação se deu por meio de uma não-marcação. Nem Guardiola atinou com a estratégia. Caso contrário, teria tirado Dani Alves do jogo.

Veja a reprise. Bola com o Barcelona. Pelo meio, os comandados de Guardiola têm dificuldade de executar sua habitualmente estonteante troca de passes, visto que todo o Real Madrid está ali. Sobram merengues no bloqueio central, já que o flanco está propositalmente liberado. Cercado e acossado numa selva branca, o time azul-grená é incitado a despejar a bola para a clareira na direita. Sem sentir, apenas por um desejo instintivo de recuperar o ar num ambiente tão asfixiante, o melhor time do planeta faz exatamente o que Mourinho vislumbrara, num insight maquiavélico. Repetidas bolas com Daniel Alves – que não é um virtuose e, sozinho, pouco pode fazer – significam muitos cruzamentos, pois as opções de tabela estão vigiadas pelo Real. E bola alçada não é da alçada deste Barcelona.

Se David Villa (faz muita falta, assim como o ótimo e subestimado Abidal) estivesse em campo, ainda haveria alguma esperança para o chuveirinho que o Barça foi obrigado a praticar. Sem ele, e com os defensores merengues (Gullivers perto dos liliputianos catalães) espanando todas as bolas, a opção que restava a Guardiola era sacar Daniel Alves, substituindo-o por Piqué. Messi passaria a ocupar o corredor ofensivo da direita, medida que esgarçaria a barreira madridista.

Essa mudança deveria ter sido operada bem cedo, no máximo durante o intervalo, acompanhada de outras, como Fábregas e Sánchez (ou Pedro) nos postos de Tello e Thiago. A aposta no jovem (e verde) Tello revelou-se um erro muito antes do segundo tempo, e só o receio de queimá-lo pode explicar o fato de Guardiola o ter tirado tão tardiamente.

O campeonato espanhol acabou para o Barcelona, e atrevo-me a dizer que somente uma vitória sobre o Real numa das possíveis finais de Champions League apagaria o dissabor do fracasso no Camp Nou. Nem um eventual triunfo sobre o Bayern apaziguaria por completo a equipe catalã, que precisa de uma chance para provar que ainda é a melhor, que supera qualquer retranca, mesmo quando a retranca finge, cínica e genialmente, que um dos adversários, ali pela direita, não existe.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Enredo plagiado

Trajetória de Ronaldinho no Flamengo lembra a de Romário


Romário não fez mil gols. A ficção que envolveu jogos pelo juvenil do Olaria e amistosos de despedida poderia ter sido evitada se, durante os quase cinco anos em que defendeu o Flamengo, o inveterado goleador tivesse levado a profissão mais a sério. Tenho a impressão de que Romário só atinou com sua relevância histórica e com o desperdício a que estava se submetendo tardiamente, percepção que o levou a tirar o máximo que podia de sua condição de veterano extra-série, na ânsia sôfrega de recuperar o tempo perdido. Não por acaso, foi até os 40 anos. Logo ele, que, ainda garoto, declarara que penduraria as chuteiras aos 27.

Houvesse, nos anos de Flamengo, mostrado a determinação que esbanjou no ano 2000, já pelo Vasco, Romário teria, possivelmente, colecionado mais títulos. Sim, porque sua passagem pela Gávea foi paupérrima nesse quesito, resumindo-se a dois estaduais e uma Copa Mercosul de cujas partidas finais não participou. Haverá quem afirme que o que mudou em 2000 não foi sua disposição, mas a qualidade dos parceiros, o que não deixa de conter uma verdade – Juninho Pernambucano, Juninho Paulista e Euller também tiveram uma virada de milênio iluminada e chegaram até a formar, com o Baixinho, a linha de frente da seleção comandada pelo interino Candinho na vitória de 6 a 0 sobre a Venezuela, válida pelas eliminatórias da Copa de 2002.  

Apesar da força desse contra-argumento, não abdico da ideia de que Romário, entre 95 e 99, contentou-se com a fama e com os lampejos de genialidade, sem se importar muito com o rumo da carreira. Os gols, ainda em boa quantidade (principalmente no campeonato estadual, do qual foi artilheiro nas edições de 96, 97, 98 e 99), mantinham sua popularidade em alta, e os sucessivos fracassos do Flamengo nessa época sempre acabavam sendo atribuídos a outrem. Luxemburgo, em 95, foi uma das vítimas, após queda de braço com o ídolo. Dezessete anos depois, vivenciou – e perdeu outra vez − disputa muito semelhante, desta feita com Ronaldinho. 

Falemos, então, do astro gaúcho. A nulidade no jogo de anteontem, contra o Vasco, contrasta violentamente com a expectativa que seu retorno ao Brasil gerou. Nos sonhos dos torcedores rubro-negros, a presença do melhor do mundo em 2004 e 2005 representava uma viga capital na construção de um time imbatível. O entusiasmo inebriou os sentidos da massa e bloqueou sua memória, impedindo-a de refletir sobre os duvidosos benefícios da vinda, em 1995, de outro melhor do mundo. Doze anos depois de ter deixado a Gávea, Romário ainda recebe parcelas mensais de uma dívida monstruosa. Além de alguns gols espetaculares, como o do elástico em Amaral, que outra recompensa a ousada contratação deixou para o clube? Aumento de torcida? Questionável. Intuo que a empolgante arrancada no Brasileirão de 2007, com Maracanã lotado e efervescente rodada após rodada, formou muito mais pequenos rubro-negros do que a ridícula campanha do campeonato nacional de 1995, por exemplo. 

No único repatriamento do futebol brasileiro à altura do de Romário, Ronaldinho podia ter incrementado o roteiro original. As parcas alterações no script, porém, têm sido para pior: o atual camisa 10 decide menos jogos, contagia menos a torcida e parece sempre tomado por um certo alheamento, uma estranha indiferença – Romário, mesmo no auge do “treinar pra quê?”, emitia opinião, reclamava, soltava os bichos, ou seja, manifestava alguma espécie de comprometimento. Já Ronaldinho não fala. Não sabemos o que pensa ou sente, porque não fala. E o vazio de seus depoimentos vem há tempos contaminando suas jogadas. 

Suponho que o resgate, ao menos parcial, da desenvoltura e do dinamismo que RG exibia em meados da década passada só viria mediante uma atenção muito maior aos cuidados com o seu corpo. Mais do que Romário em seu tempo de jogador, Ronaldinho precisa da força física. A musculatura avantajada que desenvolveu na Europa aliou-se a seu talento na missão de derrubar defesas adversárias, às vezes literalmente (veja aqui como, num embate de coxas, o dentuço leva John Terry ao chão, antes de arrematar para a rede), mas cobrou seu preço à medida que os anos foram passando. Hoje, para Ronaldinho, o aprimoramento e a manutenção da forma física devem exigir níveis de esforço nos treinos e de dedicação extra-campo muito superiores aos que ele, aparentemente, está disposto a atingir. Essas são conjecturas de um leigo no assunto, é bom frisar. O certo é que a agilidade e a rapidez do ex-barcelonista encontram-se num patamar insatisfatório.

Ronaldinho podia estar se empenhando mais. Não apenas para retribuir o vultoso investimento feito por dirigentes perdulários, não apenas para agradar aos flamenguistas, mas também para preservar algumas belas páginas por ele escritas na história do futebol. A sucessão de garranchos e rasuras pode conduzi-lo a um futuro arrependimento. Vida pacata, entrega absoluta, obstinação, treinamento a todo vapor, novo corte de cabelo – daqui a três ou quatro anos, nada disso poderá devolver-lhe a antiga capacidade. O que hoje depende de escolhas amanhã vai ser uma imposição do implacável tempo. Caso RG prossiga sendo um arremedo de craque até lá, estará ele preparado para se aposentar com o currículo maculado?

Tal como seu funcionário mais ilustre, o Flamengo precisa resolver como vai administrar seu tempo. Quantos meses ou anos ainda pretende esperar pelo soerguimento do futebol de Ronaldinho? O fim da parceria com a Traffic fez o peso das despesas com o craque crescer bastante e, por conseguinte, prejudicou ainda mais a já combalida situação econômica do clube. Se a atual diretoria se preocupasse em lançar um olhar crítico para o passado, tiraria alguma lição do período em que Romário vestiu o uniforme rubro-negro. O ídolo estava lá, mas faltaram organização, time coeso e títulos expressivos.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Futebol inglês carente

"Nada tão remoto, nada tão longínquo, nada tão antediluviano como o passado recente", já dizia Nelson Rodrigues 

Primeiro semestre de 2007. O desacreditado Milan é campeão europeu, mas os outros três semifinalistas da Champions League são ingleses. O Chelsea tem Mourinho no banco, Drogba e Lampard em plena forma, Essien voando. O Manchester United ainda conta com Cristiano Ronaldo, autor de dois tentos no histórico 7 a 1 sobre a Roma. O Liverpool é forte, e Gerrard vive ótima fase. O Arsenal não repete a temporada anterior, tombou na LC, mas tem Fábregas. E Henry. 

Hoje Fábregas revive os tempos de juvenil na Catalunha, Gerrard e os Reds tentam se reencontrar, Cristiano Ronaldo faz gols às pencas a muitos quilômetros de Old Trafford, a espinha dorsal do Chelsea está envelhecida e seu treinador, embora jovem, lusitano e advindo do Porto, não é o “special one”. O líder do campeonato inglês é o Manchester City, melancolicamente eliminado da LC e guiado pelo medíocre Roberto Mancini. Para completar o cenário de decadência, a nostalgia entra em campo com o ex-aposentado Paul Scholes e com a recém-inaugurada estátua de Henry, que ganhou movimentos humanos e andou assombrando oponentes com golzinhos de inverno. 

Alguém discorda de que a Premier League não é mais a mesma? Grandes ídolos se foram ou passaram há muito dos trinta, a dinheirama faz o time de proveta do tradicional City dominar o certame e os clubes menos abastados, apesar do enfraquecimento dos grandes, continuam fazendo figuração. Assistindo a partidas da atual temporada tive, em alguns momentos, sensações similares às que experimento em jogos do campeonato carioca. Dou como exemplo Manchester United 4x1 Wolverhampton, do dia 10 de dezembro. Jogo de ataque contra defesa o tempo inteiro. No quarto gol de gigante, veem-se torcedores comemorando com um insosso aplauso. Embora esse comportamento tenha, também, a ver com o perfil da plateia que acompanha o United em Old Trafford (veja aqui críticas do ídolo Roy Keane), não há dúvida de que a fragilidade do adversário torna o rumo do confronto muito previsível. 

Alguém dirá que os jogos do Barça e do Real Madrid contra os pequenos da Espanha são iguais. Não acho. Primeiro, porque blaugranas e merengues são, atualmente, muito mais agradáveis de se ver. Segundo, porque, há algum tempo, os times espanhóis que não têm chance de título (todos à exceção dos dois gigantes) parecem mais fortes que os equivalentes britânicos, vide os desempenhos recentes na Liga Europa e na antiga Copa Uefa. É verdade que as potências da Inglaterra desdenham da Liga Europa, mas não há motivo para os médios alegarem essa postura. Não avançam porque não se mostram capazes, mesmo. Nas duas últimas ocasiões em que times médios da Inglaterra chegaram à final da competição (e não consta que tenham ficado enfadados por isso), sofreram derrotas para espanhóis, uma delas acachapante (Sevilla 4x0 Middlesbrough, decisão de 2005/6). 

Na última quinta-feira, o Stoke City praticamente selou sua despedida da Liga Europa, perdendo em casa para o Valencia, por 1 a 0. O placar foi piedoso para com os britânicos, dada a inquestionável superioridade do time do brasileiro Jonas durante todo o embate. Talvez seja normal o 3º colocado do campeonato espanhol vencer o 13º lugar do inglês com tamanha facilidade, mas o que dizer de Tottenham e Fulham, pulverizados antes mesmo do mata-mata da competição, em grupos que tinham os poderosíssimos PAOK, da Grécia, e Wisla Krakow, sexto lugar do campeonato polonês? Harry Redknapp, treinador do Tottenham, nem precisava ter comparecido à coletiva pós-eliminação; até as paredes da sala de imprensa já sabiam que ele relativizaria o fracasso, enxergando nele uma grandiosa chance de concentrar esforços na batalha da Premier League. No Brasil, o discurso dos técnicos é idêntico quando seus times caem na Copa Sul-Americana.  

Se na Liga Europa a performance dos clubes ingleses é fraca há tempos, o mesmo não se podia dizer, até poucos anos atrás, de seu desempenho na Liga dos Campeões. Na temporada seguinte à de 2006/7, citada no início deste texto, o futebol da terra da Rainha dominou novamente a LC, pondo dois de seus representantes – Chelsea e Manchester United – na decisão. Os comandados de Alex Ferguson ainda chegaram a outras duas finais, em 2009 e 2011. No entanto, além de terem perdido ambas, sofreram com o empobrecimento técnico decorrente da saída de dois excelentes atacantes (Tévez e Ronaldo) e da difícil renovação do time, que não dispõe de substitutos à altura para expoentes como Ryan Giggs. Na LC 2011/12, os Red devils empacaram na fase de grupos.  

O rival Arsenal conseguiu avançar, mas a goleada que tomou em Milão, na última quarta-feira, fulminou suas esperanças na competição. Embora sempre exista a possibilidade de um milagre como o alcançado pelo Deportivo, na LC 2003/4, ante o mesmo Milan, a equipe londrina não parece preparada para algo tão grandioso. Seria necessária uma densa reflexão para tentar entender como o temido esquadrão de 2004, campeão invicto, foi enfraquecendo paulatinamente até chegar ao estágio atual. Em meio parágrafo, pode-se aventar a hipótese de que acontece por lá algo semelhante ao que se observa no United: a reposição das lacunas deixadas por medalhões do porte de Ashley Cole, Vieira, Pires, Bergkamp e Henry é um tormento para Wenger, que, para piorar, tem feito, ultimamente, compras nem de longe tão certeiras quanto as do fim do século XX. Pode-se, ainda, apontar sua pressa em se desfazer de um meio-campo que, já na era do Emirates Stadium, alinhava Flamini e Hleb, jogadores por vezes contestados, mas que se entendiam muito bem com Fábregas e Rosicky. Lembro-me de um Arsenal 6x2 Blackburn (um Blackburn bem melhor que o atual, é bom frisar), às vésperas do Natal de 2006. Um presente para os apreciadores de futebol, tal a fluidez ofensiva daquele jovem time, que prometia durar muitos anos. Algo deu errado no meio do caminho. 

Liverpool e Chelsea também amargaram perda de poderio. Os Reds não ouvem o hino da LC há algum tempo, enquanto os Blues passam por momento delicado e podem, na terça de carnaval, sambar no Estádio San Paolo, frente ao Napoli de Lavezzi e Cavani. Uma eventual queda, somada à quase garantida eliminação do Arsenal, resultaria na ausência de ingleses nas quartas-de-final da Liga dos Campeões, cenário que não se apresenta desde a temporada 1995/96!  

É ou não é uma derrocada? Há de se admitir que o campeonato inglês continua oferecendo ao público bons espetáculos, e que, com a crise dos gigantes da última década, a emoção da disputa até aumentou, já que clubes outrora muito distantes do cume da tabela hoje se permitem sonhar com vagas na LC. Contudo, é inegável que o nível técnico da competição caiu. A carência existe, e as tentativas de remediá-la passam por Scholes, pelo déjà vu de Henry e pela euforia com que se repercute um possível regresso da dupla Mourinho/Cristiano ao país que inventou o jogo.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O Joel italiano

Claudio Ranieri não ganha nada realmente importante, mas tem carisma e mercado

Quando um clube brasileiro, especialmente carioca, esquece todos os seus falsos projetos e procura alguém com um método bem feijão-com-arroz, incapaz de pôr o time nas alturas mas eficaz o bastante para livrá-lo de campanhas vexatórias, quase sempre cogita contratar Joel Santana. E com grande frequência o faz. O número de passagens por certas agremiações (4 no Vasco, 5 no Flamengo, 3 no Fluminense, 3 no Botafogo e 3 no Bahia) testifica isso.

Tido como folclórico e apaziguador – embora recentes entreveros com Roger (Cruzeiro) e Loco Abreu (Botafogo) revelem focos de discórdia na família do “paizão” −, Joel tem um currículo abarrotado de estaduais e carente de títulos expressivos. O Brasileiro e a Mercosul que o Vasco conquistou em 2000 contaram com sua presença no banco apenas no desenlace das competições, depois da intempestiva demissão de Osvaldo de Oliveira. De resto, nenhuma taça nacional, tampouco internacional. A arrancada do Flamengo no Brasileirão de 2007 talvez tenha sido seu mais impressionante e refulgente trabalho, concluído de forma muito esquisita: pela Libertadores de 2008, jogo de volta das oitavas-de-final, o América do México venceu o Flamengo por 3 a 0 no Maracanã e transformou a festa de despedida para Joel – que assumiria a seleção sul-africana – em filme B de terror nonsense.

A passagem de Joel pela África do Sul sempre suscitará alusões anedóticas aos improvisos no trato com o idioma inglês. A naturalidade com que tirava soluções comunicativas da cartola (ou de sua mágica prancheta) combinou com a imagem do cara simples, boa-praça, munido de boas doses de malandragem. Era o mesmo Joel dos óculos pendendo sobre a nareba, do gestual circense à beira do campo, da fisionomia fantasmagórica ao menor sinal de erro do juiz, das tiradas espertas e engraçadas. O inglês caótico incrementou a figura do sujeito singelo, do povão. A simpatia e o carisma, somados à inegável competência para arrumar casas bagunçadas, ajudaram a pôr Joel em condição privilegiada no mercado de técnicos do Brasil.

Algo similar ocorre com Claudio Ranieri, atual técnico da Internazionale, que, diga-se de passagem, ontem perdeu em casa para o lanterna Novara, após tombar diante da Roma por 4 a 0. Ranieri jamais ergueu um troféu de alto quilate, a menos que ponhamos a Copa Itália (arrebatada em 1995/6, pela Fiorentina) e a Copa do Rei (com o Valencia, em 1998/9) nessa categoria. Teve passagens por Napoli, Roma, Juventus, Atlético de Madrid e Chelsea, todas desprovidas de título, mas ricas em amizades. Por onde passou, Ranieri angariou respeito de jogadores e imprensa. Bem-humorado, generoso e humano, além de grande conhecedor de futebol, costuma falhar no domínio de situações extremas, que demandam elevado grau de frieza e pragmatismo. Foi assim no campeonato perdido com a Roma em 2010. Deu-se o mesmo no Chelsea de 2003/4, eliminado nas semifinais da Liga dos Campeões pelo Mônaco, depois de ter batido o então quase invencível Arsenal nas quartas.

Em um arroubo de emoção, Ranieri chorou copiosamente ao vencer esse duelo contra Wenger. A temporada 2003/4, que marcou a chegada de Abramovich aos Blues, tinha sido muito dura e estressante, devido à sabida preferência do bilionário russo por outros nomes. Desde 2000 no clube londrino, Ranieri aturou admiravelmente a pressão, mas, no fim das contas, foi substituído por Mourinho, que conseguiu ser, pelo Porto, campeão daquela LC que o italiano deixou escapar. 

Quando chegou à Premier League, na virada do milênio, Ranieri dispunha de um inglês tão primitivo e engraçado quanto o de Joel Santana. Outro dado que aproxima os dois é o fato de ambos terem sido zagueiros toscos, becões de roça da década de 70. A ausência de empáfia, a escassez de triunfos importantes, a facilidade com que arrumam cobiçados empregos... Joel e Ranieri têm realmente muita coisa em comum. E o parentesco vai se estreitar se ambos forem em breve demitidos das potências que comandam. Nesse caso, eles bem que podiam aproveitar o tempo livre da rara folga para um bate-papo descontraído sobre suas aventuras no futebol, comendo carne em Roma (cidade natal de Ranieri, único esportista de uma família de açougueiros) ou deglutindo um ovo cozido com sal num botequim do Rio. O idioma da conversa? Inglês, é claro!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sul-Americano de 1948

Em 2008, escrevi para a Revista Trivela uma matéria a respeito do título vascaíno no Sul-Americano de 1948. Li agora, no site da Espn, que o Vasco vai pleitear a condição de primeiro campeão da Libertadores, defendendo que o certame embrionário lhe era equivalente. Abaixo, o texto da reportagem, que saiu na edição de março de 2008.


Nos trilhos da Libertadores
Há 60 anos, o Expresso da Vitória conquistou seu mais importante título

“A façanha do Vasco foi a maior jamais realizada por clube brasileiro”. Com essa frase, Mário Filho iniciou sua coluna no Jornal dos Sports de 16 de março na 1948. Na antevéspera, o time cruzmaltino saíra do Estádio Nacional de Santiago com um enorme condor de bronze, que representava a conquista do Campeonato Sul-Americano de Campeões. A ave escolhida para dar forma ao troféu simboliza a liberdade do continente americano, mais tarde lembrada, também, pelo nome da prestigiosa competição que recolocaria em prática a grande sacada do final dos anos 40. 

Em 1996, a Conmebol reconheceu a importância do título do Vasco, que, no ano seguinte, pôde jogar a Supercopa Libertadores. Admitir a equivalência entre o certame do Chile e a Libertadores não foi um exagero da entidade. Descontados os limites que a época impunha – em alguns países, ainda não havia campeonatos de abrangência nacional –, a seleção dos participantes foi bem criteriosa, mais até do que na Europa, cuja primeira Copa dos Campeões definiu seus disputantes sem levar em conta o desempenho no ano anterior.

A presença de representantes de sete países foi importante para diferenciar o campeonato de Santiago dos muitos desafios, quadrangulares e torneios que, à época, fervilhavam na América do Sul. Fazia muitos anos, por exemplo, que os campeões do Uruguai e da Argentina duelavam pelo título “rioplatense”. Em 1947, a chamada Copa do Atlântico reunira times brasileiros, argentinos e uruguaios. Poucos dias antes de o Vasco chegar ao Chile, o Flamengo esteve lá jogando amistosos. No mesmo período, o River Plate visitou a capital paulista, onde perdeu para o Corinthians, empatou com o São Paulo e venceu o Palmeiras. 

Apesar da campanha irregular nesse tour, “La Maquina” de Moreno, Labruna e Di Stéfano manteve sua aura quase intacta e chegou ao Campeonato Sul-Americano ostentando a insígnia de favorito. Atribuiu-se a medíocre performance em solo paulistano às fortes chuvas que haviam enlameado a grama e prejudicado o fino toque de bola portenho. 

De azarão a favorito 


Às seis horas da manhã do dia 7 de fevereiro, o Vasco decolava rumo a Santiago. O time não ia curtir a folia carioca, embora merecesse: no ano anterior, havia conquistado o título local de forma invicta. E sem Ademir de Menezes, que estava no Fluminense. Mas, naquele sábado de carnaval, o filho pródigo já havia retornado ao lar. Ele e mais dezessete integrantes do Expresso da Vitória partiam para o Chile na condição de figurantes. Afinal, nenhum time brasileiro, nem mesmo a seleção, havia vencido um campeonato em território estrangeiro. 

Robinson Alvarez, presidente do Colo Colo e idealizador da competição, pensava assim. Por isso, a tabela agendou, inicialmente, os cruzamentos entre River, Colo Colo e Nacional para as últimas rodadas. Esperava-se, desse jeito, garantir o interesse do público até o final. No entanto, em seu segundo jogo, o time treinado por Flávio Costa bateu o Nacional por 4 a 1, obrigando Alvarez a rever os seus conceitos. Após certa resistência a alterações no cronograma, o Vasco acabou cedendo. Seu último compromisso passou a ser contra o River Plate, no dia 14 de março. 

O caminho para o título

A goleada sobre o campeão uruguaio foi a única partida de Ademir no certame. Um chute do beque Rodolfo Pini provocou uma fratura no pé direito do “Queixada”, que regressou ao Rio para iniciar a recuperação. Embora o desfalque fosse preocupante, o time continuou rendendo bem. “Havia ótimos reservas” – lembra o jornalista Luiz Mendes, que acompanhou a competição – “Desde 1944, o Vasco era o melhor time do Brasil”. 

Pouco a pouco, Flavio Costa foi encontrando a formação ideal. O zagueiro Wilson, que, em janeiro, ainda defendia os juvenis, surpreendeu com atuações muito seguras. O mesmo não sucedeu com o jovem Dimas, artilheiro do carioca de 47, que parecia meio preso. O técnico, então, optou por deslocar Friaça da ponta direita para o centro do ataque, onde ele teve atuações destacadas. “Eu tinha um chute muito forte”, conta o ex-jogador, morando hoje em Porciúncula (RJ), sua cidade natal. 

Um dos quatro gols de Friaça no campeonato foi marcado no empate com o Colo Colo, que alinhou alguns jogadores de outros times chilenos, burlando o regulamento. Esse não foi o único caso de armação do certame. A arbitragem da batalha entre Vasco e River, a cargo do uruguaio Nobel Valentini, foi muito contestada pelos vascaínos e pela imprensa, principalmente por conta do gol anulado de Chico, em suposto impedimento. 

Nessa partida decisiva, o River necessitava da vitória. Foi o adversário, porém, que tomou as rédeas do confronto: “O Vasco da Gama, que devia ser o vencedor, não acusou pontos débeis em suas diferentes linhas, e realizou ontem sua melhor partida no campeonato”, apontou o jornal La Nación. Di Stéfano, eficazmente marcado por Wilson, só veio a tocar na bola aos 26 minutos. Barbosa pegou pênalti cobrado por Labruna, segurando o 0x0 e coroando sua bela passagem por Santiago. 

No Rio de Janeiro, uma multidão foi recepcionar o Vasco. Desfilando em carros abertos, rumo a São Januário, os heróis fizeram, finalmente, o seu carnaval. Na verdade, apenas alguns deles, porque outros tiveram de ir diretamente para Montevidéu, onde a seleção jogaria a Copa Rio Branco. O Vasco era a base do escrete nacional e o campeão dos campeões sul-americanos. Por isso, como diz o cântico mais ouvido em São Januário atualmente, uma das grandes glórias do Gigante da Colina “é relembrar o Expresso da Vitória”. 

Descontinuidade 

Além de espetáculo esportivo, o Campeonato Sul-americano de Campeões foi um movimentado evento social. O Colo Colo não mediu esforços para dar ares de festa à competição, promovendo homenagens e confraternizações. Antes de a bola rolar, houve concurso de cartazes e sorteio de viagens para quem comprasse ingresso de tribuna especial. Na cerimônia de abertura, as delegações desfilaram pelo campo do Estádio Nacional, entoaram os hinos de seus países e fizeram o juramento de “aceitar as derrotas com esportividade”. 

A promessa, contudo, não foi cumprida à risca. O jogo Colo Colo 3x2 Nacional ilustra bem isso. Enquanto perdia por 2 a 1, a equipe chilena atormentou o árbitro brasileiro Alberto da Gama Malcher, obrigando-o a interromper a partida e descer para o vestiário. Malcher só retomou seu serviço depois do bizarro apelo do presidente Robinson Alvarez, de microfone em punho: “Peço ao público que faça o sacrifício de ver atuando novamente este juiz”. Dias depois, Alvarez se retratou e até deu uma medalha a Malcher, mas o mal já estava feito. 

Antes do episódio, o Nacional ainda brigava pela taça. Seu descontentamento com o campeonato só não foi maior do que o do River Plate, que se sujeitou a um arranhão na lataria da “Máquina”. O próprio Vasco, embora campeão, não engolira os cambalachos do Colo Colo na inscrição de jogadores. Essa soma de insatisfações atrapalhou os planos de Robinson Alvarez, que não concretizou o desejo de organizar outra edição do torneio. Mas a semente de uma frondosa árvore já estava plantada. Hoje, em seu galho mais antigo, um condor move as asas. 


Clubes que participaram da competição 


Vasco da Gama (BRA)


Como chegou à competição

Campeão carioca de 1947
Time-base
Barbosa, Augusto e Wilson; Eli, Danilo e Jorge; Djalma, Maneca, Friaça, Ismael e Chico

Características

Individualmente muito forte, o time crescia quando diante de desafios mais difíceis. Não por acaso, suas melhores atuações foram contra o segundo, o terceiro e o quarto colocados
Resultado
Campeão
Situação atual
Sem títulos há cinco anos e fora da Libertadores desde 2001


River Plate (ARG)

Como chegou à competição
Campeão argentino de 1947
Time-base
Grisetti, Vaghi e Rodríguez; Yácono, Rossi e Ramos; Reyes, Moreno, Di Stéfano, Labruna e Loustau

Características

Quase todos os jogadores do time vinham das categorias de base do River. Sua escola era a do jogo coletivo, baseado na manutenção da posse de bola e em triangulações envolventes
Resultado
Vice-campeão
Situação atual
Não consegue ter o mesmo sucesso internacional do rival Boca

Nacional (URU)


Como chegou à competição

Campeão uruguaio de 1947
Time-base
Paz, Raúl Pini e Tejera; Santamaría, Rodolfo Pini e Cajiga; Castro, Gómez, Atilio García, Gambetta e Orlandi

Características

A dupla Walter Gómez/Atílio García mostrava muita eficiência, porém a zaga, segundo os críticos da época, era lenta e pesada. Tejera e Gambetta enfrentariam o Brasil em 1950
Resultado
Terceiro lugar
Situação atual
Tricampeão da Libertadores, perdeu espaço no cenário continental

Municipal (PER)


Como chegou à competição

Vice-campeão peruano de 1947 (o campeão, Atlético Chalaco, recusou o convite)
Time-base
Suárez, Cavadas e Perales; Colunga, Castillo e Celi; Hurtado, Mosquera, Drago, Guzmán e Torres

Características

Baixinhos e habilidosos, os “Tres Gatitos” Mosquera, Drago e Guzmán formavam o melhor núcleo da equipe, que tocava bem a bola, mas pecava pela falta de objetividade
Resultado
Quarto lugar
Situação atual
Caiu novamente para a segunda divisão do futebol peruano

Colo Colo (CHI)

Como chegou à competição

Campeão chileno de 1947
Time-base
Sabaj, Machuca e Pino; Urroz, Miranda e Muñoz; Aranda, Farias, Dominguez, Peñaloza e López
Resultado
Quinto lugar

Características

O time montado pelo ex-atacante Enrique Sorrel sentiu a pressão de jogar em casa e sofreu com a ausência do goleiro Misael Escuti, contundido
Situação atual
Vive boa fase e sonha em ganhar a Libertadores outra vez (já o fez em 1991)

Litoral (BOL)

Como chegou à competição
Campeão de La Paz em 1947
Time-base
Gafuri, Araoz e Bustamante; Ibañez, Valencia e Vargas; Sandoval, Rodríguez, Caparelli, Gutierrez e Orgaz

Características

Lutador e persistente, o limitado time do Litoral corria bastante. Muitos de seus jogadores defenderam a Bolívia na Copa do Mundo de 1950
Resultado
Sexto lugar
Situação atual
O período áureo do clube foi mesmo o fim dos anos 40. Depois, perambulou por divisões inferiores, até desistir de disputar qualquer campeonato, em 2003

Emelec (EQU)

Como chegou à competição

Convite. Vale frisar, porém, que, em 1946, o clube venceu o campeonato de Guayaquil e que o ano de 1947 foi atípico para a cidade, pois lá se realizou a Copa América
Time-base
Arias, Henríquez e Zurita; Riveros, Alvarez e Ortiz; Albornoz, Jiménez, Alcívar, Yepez e Mendoza

Características

Contava com jogadores rápidos, mas não ia muito além disso. Os destaques eram Henríquez e Alvarez, que chegaram a atuar na liga pirata colombiana
Resultado
Último lugar
Situação atual
Ainda é um dos clubes mais importantes do Equador