quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Enredo plagiado

Trajetória de Ronaldinho no Flamengo lembra a de Romário


Romário não fez mil gols. A ficção que envolveu jogos pelo juvenil do Olaria e amistosos de despedida poderia ter sido evitada se, durante os quase cinco anos em que defendeu o Flamengo, o inveterado goleador tivesse levado a profissão mais a sério. Tenho a impressão de que Romário só atinou com sua relevância histórica e com o desperdício a que estava se submetendo tardiamente, percepção que o levou a tirar o máximo que podia de sua condição de veterano extra-série, na ânsia sôfrega de recuperar o tempo perdido. Não por acaso, foi até os 40 anos. Logo ele, que, ainda garoto, declarara que penduraria as chuteiras aos 27.

Houvesse, nos anos de Flamengo, mostrado a determinação que esbanjou no ano 2000, já pelo Vasco, Romário teria, possivelmente, colecionado mais títulos. Sim, porque sua passagem pela Gávea foi paupérrima nesse quesito, resumindo-se a dois estaduais e uma Copa Mercosul de cujas partidas finais não participou. Haverá quem afirme que o que mudou em 2000 não foi sua disposição, mas a qualidade dos parceiros, o que não deixa de conter uma verdade – Juninho Pernambucano, Juninho Paulista e Euller também tiveram uma virada de milênio iluminada e chegaram até a formar, com o Baixinho, a linha de frente da seleção comandada pelo interino Candinho na vitória de 6 a 0 sobre a Venezuela, válida pelas eliminatórias da Copa de 2002.  

Apesar da força desse contra-argumento, não abdico da ideia de que Romário, entre 95 e 99, contentou-se com a fama e com os lampejos de genialidade, sem se importar muito com o rumo da carreira. Os gols, ainda em boa quantidade (principalmente no campeonato estadual, do qual foi artilheiro nas edições de 96, 97, 98 e 99), mantinham sua popularidade em alta, e os sucessivos fracassos do Flamengo nessa época sempre acabavam sendo atribuídos a outrem. Luxemburgo, em 95, foi uma das vítimas, após queda de braço com o ídolo. Dezessete anos depois, vivenciou – e perdeu outra vez − disputa muito semelhante, desta feita com Ronaldinho. 

Falemos, então, do astro gaúcho. A nulidade no jogo de anteontem, contra o Vasco, contrasta violentamente com a expectativa que seu retorno ao Brasil gerou. Nos sonhos dos torcedores rubro-negros, a presença do melhor do mundo em 2004 e 2005 representava uma viga capital na construção de um time imbatível. O entusiasmo inebriou os sentidos da massa e bloqueou sua memória, impedindo-a de refletir sobre os duvidosos benefícios da vinda, em 1995, de outro melhor do mundo. Doze anos depois de ter deixado a Gávea, Romário ainda recebe parcelas mensais de uma dívida monstruosa. Além de alguns gols espetaculares, como o do elástico em Amaral, que outra recompensa a ousada contratação deixou para o clube? Aumento de torcida? Questionável. Intuo que a empolgante arrancada no Brasileirão de 2007, com Maracanã lotado e efervescente rodada após rodada, formou muito mais pequenos rubro-negros do que a ridícula campanha do campeonato nacional de 1995, por exemplo. 

No único repatriamento do futebol brasileiro à altura do de Romário, Ronaldinho podia ter incrementado o roteiro original. As parcas alterações no script, porém, têm sido para pior: o atual camisa 10 decide menos jogos, contagia menos a torcida e parece sempre tomado por um certo alheamento, uma estranha indiferença – Romário, mesmo no auge do “treinar pra quê?”, emitia opinião, reclamava, soltava os bichos, ou seja, manifestava alguma espécie de comprometimento. Já Ronaldinho não fala. Não sabemos o que pensa ou sente, porque não fala. E o vazio de seus depoimentos vem há tempos contaminando suas jogadas. 

Suponho que o resgate, ao menos parcial, da desenvoltura e do dinamismo que RG exibia em meados da década passada só viria mediante uma atenção muito maior aos cuidados com o seu corpo. Mais do que Romário em seu tempo de jogador, Ronaldinho precisa da força física. A musculatura avantajada que desenvolveu na Europa aliou-se a seu talento na missão de derrubar defesas adversárias, às vezes literalmente (veja aqui como, num embate de coxas, o dentuço leva John Terry ao chão, antes de arrematar para a rede), mas cobrou seu preço à medida que os anos foram passando. Hoje, para Ronaldinho, o aprimoramento e a manutenção da forma física devem exigir níveis de esforço nos treinos e de dedicação extra-campo muito superiores aos que ele, aparentemente, está disposto a atingir. Essas são conjecturas de um leigo no assunto, é bom frisar. O certo é que a agilidade e a rapidez do ex-barcelonista encontram-se num patamar insatisfatório.

Ronaldinho podia estar se empenhando mais. Não apenas para retribuir o vultoso investimento feito por dirigentes perdulários, não apenas para agradar aos flamenguistas, mas também para preservar algumas belas páginas por ele escritas na história do futebol. A sucessão de garranchos e rasuras pode conduzi-lo a um futuro arrependimento. Vida pacata, entrega absoluta, obstinação, treinamento a todo vapor, novo corte de cabelo – daqui a três ou quatro anos, nada disso poderá devolver-lhe a antiga capacidade. O que hoje depende de escolhas amanhã vai ser uma imposição do implacável tempo. Caso RG prossiga sendo um arremedo de craque até lá, estará ele preparado para se aposentar com o currículo maculado?

Tal como seu funcionário mais ilustre, o Flamengo precisa resolver como vai administrar seu tempo. Quantos meses ou anos ainda pretende esperar pelo soerguimento do futebol de Ronaldinho? O fim da parceria com a Traffic fez o peso das despesas com o craque crescer bastante e, por conseguinte, prejudicou ainda mais a já combalida situação econômica do clube. Se a atual diretoria se preocupasse em lançar um olhar crítico para o passado, tiraria alguma lição do período em que Romário vestiu o uniforme rubro-negro. O ídolo estava lá, mas faltaram organização, time coeso e títulos expressivos.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Futebol inglês carente

"Nada tão remoto, nada tão longínquo, nada tão antediluviano como o passado recente", já dizia Nelson Rodrigues 

Primeiro semestre de 2007. O desacreditado Milan é campeão europeu, mas os outros três semifinalistas da Champions League são ingleses. O Chelsea tem Mourinho no banco, Drogba e Lampard em plena forma, Essien voando. O Manchester United ainda conta com Cristiano Ronaldo, autor de dois tentos no histórico 7 a 1 sobre a Roma. O Liverpool é forte, e Gerrard vive ótima fase. O Arsenal não repete a temporada anterior, tombou na LC, mas tem Fábregas. E Henry. 

Hoje Fábregas revive os tempos de juvenil na Catalunha, Gerrard e os Reds tentam se reencontrar, Cristiano Ronaldo faz gols às pencas a muitos quilômetros de Old Trafford, a espinha dorsal do Chelsea está envelhecida e seu treinador, embora jovem, lusitano e advindo do Porto, não é o “special one”. O líder do campeonato inglês é o Manchester City, melancolicamente eliminado da LC e guiado pelo medíocre Roberto Mancini. Para completar o cenário de decadência, a nostalgia entra em campo com o ex-aposentado Paul Scholes e com a recém-inaugurada estátua de Henry, que ganhou movimentos humanos e andou assombrando oponentes com golzinhos de inverno. 

Alguém discorda de que a Premier League não é mais a mesma? Grandes ídolos se foram ou passaram há muito dos trinta, a dinheirama faz o time de proveta do tradicional City dominar o certame e os clubes menos abastados, apesar do enfraquecimento dos grandes, continuam fazendo figuração. Assistindo a partidas da atual temporada tive, em alguns momentos, sensações similares às que experimento em jogos do campeonato carioca. Dou como exemplo Manchester United 4x1 Wolverhampton, do dia 10 de dezembro. Jogo de ataque contra defesa o tempo inteiro. No quarto gol de gigante, veem-se torcedores comemorando com um insosso aplauso. Embora esse comportamento tenha, também, a ver com o perfil da plateia que acompanha o United em Old Trafford (veja aqui críticas do ídolo Roy Keane), não há dúvida de que a fragilidade do adversário torna o rumo do confronto muito previsível. 

Alguém dirá que os jogos do Barça e do Real Madrid contra os pequenos da Espanha são iguais. Não acho. Primeiro, porque blaugranas e merengues são, atualmente, muito mais agradáveis de se ver. Segundo, porque, há algum tempo, os times espanhóis que não têm chance de título (todos à exceção dos dois gigantes) parecem mais fortes que os equivalentes britânicos, vide os desempenhos recentes na Liga Europa e na antiga Copa Uefa. É verdade que as potências da Inglaterra desdenham da Liga Europa, mas não há motivo para os médios alegarem essa postura. Não avançam porque não se mostram capazes, mesmo. Nas duas últimas ocasiões em que times médios da Inglaterra chegaram à final da competição (e não consta que tenham ficado enfadados por isso), sofreram derrotas para espanhóis, uma delas acachapante (Sevilla 4x0 Middlesbrough, decisão de 2005/6). 

Na última quinta-feira, o Stoke City praticamente selou sua despedida da Liga Europa, perdendo em casa para o Valencia, por 1 a 0. O placar foi piedoso para com os britânicos, dada a inquestionável superioridade do time do brasileiro Jonas durante todo o embate. Talvez seja normal o 3º colocado do campeonato espanhol vencer o 13º lugar do inglês com tamanha facilidade, mas o que dizer de Tottenham e Fulham, pulverizados antes mesmo do mata-mata da competição, em grupos que tinham os poderosíssimos PAOK, da Grécia, e Wisla Krakow, sexto lugar do campeonato polonês? Harry Redknapp, treinador do Tottenham, nem precisava ter comparecido à coletiva pós-eliminação; até as paredes da sala de imprensa já sabiam que ele relativizaria o fracasso, enxergando nele uma grandiosa chance de concentrar esforços na batalha da Premier League. No Brasil, o discurso dos técnicos é idêntico quando seus times caem na Copa Sul-Americana.  

Se na Liga Europa a performance dos clubes ingleses é fraca há tempos, o mesmo não se podia dizer, até poucos anos atrás, de seu desempenho na Liga dos Campeões. Na temporada seguinte à de 2006/7, citada no início deste texto, o futebol da terra da Rainha dominou novamente a LC, pondo dois de seus representantes – Chelsea e Manchester United – na decisão. Os comandados de Alex Ferguson ainda chegaram a outras duas finais, em 2009 e 2011. No entanto, além de terem perdido ambas, sofreram com o empobrecimento técnico decorrente da saída de dois excelentes atacantes (Tévez e Ronaldo) e da difícil renovação do time, que não dispõe de substitutos à altura para expoentes como Ryan Giggs. Na LC 2011/12, os Red devils empacaram na fase de grupos.  

O rival Arsenal conseguiu avançar, mas a goleada que tomou em Milão, na última quarta-feira, fulminou suas esperanças na competição. Embora sempre exista a possibilidade de um milagre como o alcançado pelo Deportivo, na LC 2003/4, ante o mesmo Milan, a equipe londrina não parece preparada para algo tão grandioso. Seria necessária uma densa reflexão para tentar entender como o temido esquadrão de 2004, campeão invicto, foi enfraquecendo paulatinamente até chegar ao estágio atual. Em meio parágrafo, pode-se aventar a hipótese de que acontece por lá algo semelhante ao que se observa no United: a reposição das lacunas deixadas por medalhões do porte de Ashley Cole, Vieira, Pires, Bergkamp e Henry é um tormento para Wenger, que, para piorar, tem feito, ultimamente, compras nem de longe tão certeiras quanto as do fim do século XX. Pode-se, ainda, apontar sua pressa em se desfazer de um meio-campo que, já na era do Emirates Stadium, alinhava Flamini e Hleb, jogadores por vezes contestados, mas que se entendiam muito bem com Fábregas e Rosicky. Lembro-me de um Arsenal 6x2 Blackburn (um Blackburn bem melhor que o atual, é bom frisar), às vésperas do Natal de 2006. Um presente para os apreciadores de futebol, tal a fluidez ofensiva daquele jovem time, que prometia durar muitos anos. Algo deu errado no meio do caminho. 

Liverpool e Chelsea também amargaram perda de poderio. Os Reds não ouvem o hino da LC há algum tempo, enquanto os Blues passam por momento delicado e podem, na terça de carnaval, sambar no Estádio San Paolo, frente ao Napoli de Lavezzi e Cavani. Uma eventual queda, somada à quase garantida eliminação do Arsenal, resultaria na ausência de ingleses nas quartas-de-final da Liga dos Campeões, cenário que não se apresenta desde a temporada 1995/96!  

É ou não é uma derrocada? Há de se admitir que o campeonato inglês continua oferecendo ao público bons espetáculos, e que, com a crise dos gigantes da última década, a emoção da disputa até aumentou, já que clubes outrora muito distantes do cume da tabela hoje se permitem sonhar com vagas na LC. Contudo, é inegável que o nível técnico da competição caiu. A carência existe, e as tentativas de remediá-la passam por Scholes, pelo déjà vu de Henry e pela euforia com que se repercute um possível regresso da dupla Mourinho/Cristiano ao país que inventou o jogo.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O Joel italiano

Claudio Ranieri não ganha nada realmente importante, mas tem carisma e mercado

Quando um clube brasileiro, especialmente carioca, esquece todos os seus falsos projetos e procura alguém com um método bem feijão-com-arroz, incapaz de pôr o time nas alturas mas eficaz o bastante para livrá-lo de campanhas vexatórias, quase sempre cogita contratar Joel Santana. E com grande frequência o faz. O número de passagens por certas agremiações (4 no Vasco, 5 no Flamengo, 3 no Fluminense, 3 no Botafogo e 3 no Bahia) testifica isso.

Tido como folclórico e apaziguador – embora recentes entreveros com Roger (Cruzeiro) e Loco Abreu (Botafogo) revelem focos de discórdia na família do “paizão” −, Joel tem um currículo abarrotado de estaduais e carente de títulos expressivos. O Brasileiro e a Mercosul que o Vasco conquistou em 2000 contaram com sua presença no banco apenas no desenlace das competições, depois da intempestiva demissão de Osvaldo de Oliveira. De resto, nenhuma taça nacional, tampouco internacional. A arrancada do Flamengo no Brasileirão de 2007 talvez tenha sido seu mais impressionante e refulgente trabalho, concluído de forma muito esquisita: pela Libertadores de 2008, jogo de volta das oitavas-de-final, o América do México venceu o Flamengo por 3 a 0 no Maracanã e transformou a festa de despedida para Joel – que assumiria a seleção sul-africana – em filme B de terror nonsense.

A passagem de Joel pela África do Sul sempre suscitará alusões anedóticas aos improvisos no trato com o idioma inglês. A naturalidade com que tirava soluções comunicativas da cartola (ou de sua mágica prancheta) combinou com a imagem do cara simples, boa-praça, munido de boas doses de malandragem. Era o mesmo Joel dos óculos pendendo sobre a nareba, do gestual circense à beira do campo, da fisionomia fantasmagórica ao menor sinal de erro do juiz, das tiradas espertas e engraçadas. O inglês caótico incrementou a figura do sujeito singelo, do povão. A simpatia e o carisma, somados à inegável competência para arrumar casas bagunçadas, ajudaram a pôr Joel em condição privilegiada no mercado de técnicos do Brasil.

Algo similar ocorre com Claudio Ranieri, atual técnico da Internazionale, que, diga-se de passagem, ontem perdeu em casa para o lanterna Novara, após tombar diante da Roma por 4 a 0. Ranieri jamais ergueu um troféu de alto quilate, a menos que ponhamos a Copa Itália (arrebatada em 1995/6, pela Fiorentina) e a Copa do Rei (com o Valencia, em 1998/9) nessa categoria. Teve passagens por Napoli, Roma, Juventus, Atlético de Madrid e Chelsea, todas desprovidas de título, mas ricas em amizades. Por onde passou, Ranieri angariou respeito de jogadores e imprensa. Bem-humorado, generoso e humano, além de grande conhecedor de futebol, costuma falhar no domínio de situações extremas, que demandam elevado grau de frieza e pragmatismo. Foi assim no campeonato perdido com a Roma em 2010. Deu-se o mesmo no Chelsea de 2003/4, eliminado nas semifinais da Liga dos Campeões pelo Mônaco, depois de ter batido o então quase invencível Arsenal nas quartas.

Em um arroubo de emoção, Ranieri chorou copiosamente ao vencer esse duelo contra Wenger. A temporada 2003/4, que marcou a chegada de Abramovich aos Blues, tinha sido muito dura e estressante, devido à sabida preferência do bilionário russo por outros nomes. Desde 2000 no clube londrino, Ranieri aturou admiravelmente a pressão, mas, no fim das contas, foi substituído por Mourinho, que conseguiu ser, pelo Porto, campeão daquela LC que o italiano deixou escapar. 

Quando chegou à Premier League, na virada do milênio, Ranieri dispunha de um inglês tão primitivo e engraçado quanto o de Joel Santana. Outro dado que aproxima os dois é o fato de ambos terem sido zagueiros toscos, becões de roça da década de 70. A ausência de empáfia, a escassez de triunfos importantes, a facilidade com que arrumam cobiçados empregos... Joel e Ranieri têm realmente muita coisa em comum. E o parentesco vai se estreitar se ambos forem em breve demitidos das potências que comandam. Nesse caso, eles bem que podiam aproveitar o tempo livre da rara folga para um bate-papo descontraído sobre suas aventuras no futebol, comendo carne em Roma (cidade natal de Ranieri, único esportista de uma família de açougueiros) ou deglutindo um ovo cozido com sal num botequim do Rio. O idioma da conversa? Inglês, é claro!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sul-Americano de 1948

Em 2008, escrevi para a Revista Trivela uma matéria a respeito do título vascaíno no Sul-Americano de 1948. Li agora, no site da Espn, que o Vasco vai pleitear a condição de primeiro campeão da Libertadores, defendendo que o certame embrionário lhe era equivalente. Abaixo, o texto da reportagem, que saiu na edição de março de 2008.


Nos trilhos da Libertadores
Há 60 anos, o Expresso da Vitória conquistou seu mais importante título

“A façanha do Vasco foi a maior jamais realizada por clube brasileiro”. Com essa frase, Mário Filho iniciou sua coluna no Jornal dos Sports de 16 de março na 1948. Na antevéspera, o time cruzmaltino saíra do Estádio Nacional de Santiago com um enorme condor de bronze, que representava a conquista do Campeonato Sul-Americano de Campeões. A ave escolhida para dar forma ao troféu simboliza a liberdade do continente americano, mais tarde lembrada, também, pelo nome da prestigiosa competição que recolocaria em prática a grande sacada do final dos anos 40. 

Em 1996, a Conmebol reconheceu a importância do título do Vasco, que, no ano seguinte, pôde jogar a Supercopa Libertadores. Admitir a equivalência entre o certame do Chile e a Libertadores não foi um exagero da entidade. Descontados os limites que a época impunha – em alguns países, ainda não havia campeonatos de abrangência nacional –, a seleção dos participantes foi bem criteriosa, mais até do que na Europa, cuja primeira Copa dos Campeões definiu seus disputantes sem levar em conta o desempenho no ano anterior.

A presença de representantes de sete países foi importante para diferenciar o campeonato de Santiago dos muitos desafios, quadrangulares e torneios que, à época, fervilhavam na América do Sul. Fazia muitos anos, por exemplo, que os campeões do Uruguai e da Argentina duelavam pelo título “rioplatense”. Em 1947, a chamada Copa do Atlântico reunira times brasileiros, argentinos e uruguaios. Poucos dias antes de o Vasco chegar ao Chile, o Flamengo esteve lá jogando amistosos. No mesmo período, o River Plate visitou a capital paulista, onde perdeu para o Corinthians, empatou com o São Paulo e venceu o Palmeiras. 

Apesar da campanha irregular nesse tour, “La Maquina” de Moreno, Labruna e Di Stéfano manteve sua aura quase intacta e chegou ao Campeonato Sul-Americano ostentando a insígnia de favorito. Atribuiu-se a medíocre performance em solo paulistano às fortes chuvas que haviam enlameado a grama e prejudicado o fino toque de bola portenho. 

De azarão a favorito 


Às seis horas da manhã do dia 7 de fevereiro, o Vasco decolava rumo a Santiago. O time não ia curtir a folia carioca, embora merecesse: no ano anterior, havia conquistado o título local de forma invicta. E sem Ademir de Menezes, que estava no Fluminense. Mas, naquele sábado de carnaval, o filho pródigo já havia retornado ao lar. Ele e mais dezessete integrantes do Expresso da Vitória partiam para o Chile na condição de figurantes. Afinal, nenhum time brasileiro, nem mesmo a seleção, havia vencido um campeonato em território estrangeiro. 

Robinson Alvarez, presidente do Colo Colo e idealizador da competição, pensava assim. Por isso, a tabela agendou, inicialmente, os cruzamentos entre River, Colo Colo e Nacional para as últimas rodadas. Esperava-se, desse jeito, garantir o interesse do público até o final. No entanto, em seu segundo jogo, o time treinado por Flávio Costa bateu o Nacional por 4 a 1, obrigando Alvarez a rever os seus conceitos. Após certa resistência a alterações no cronograma, o Vasco acabou cedendo. Seu último compromisso passou a ser contra o River Plate, no dia 14 de março. 

O caminho para o título

A goleada sobre o campeão uruguaio foi a única partida de Ademir no certame. Um chute do beque Rodolfo Pini provocou uma fratura no pé direito do “Queixada”, que regressou ao Rio para iniciar a recuperação. Embora o desfalque fosse preocupante, o time continuou rendendo bem. “Havia ótimos reservas” – lembra o jornalista Luiz Mendes, que acompanhou a competição – “Desde 1944, o Vasco era o melhor time do Brasil”. 

Pouco a pouco, Flavio Costa foi encontrando a formação ideal. O zagueiro Wilson, que, em janeiro, ainda defendia os juvenis, surpreendeu com atuações muito seguras. O mesmo não sucedeu com o jovem Dimas, artilheiro do carioca de 47, que parecia meio preso. O técnico, então, optou por deslocar Friaça da ponta direita para o centro do ataque, onde ele teve atuações destacadas. “Eu tinha um chute muito forte”, conta o ex-jogador, morando hoje em Porciúncula (RJ), sua cidade natal. 

Um dos quatro gols de Friaça no campeonato foi marcado no empate com o Colo Colo, que alinhou alguns jogadores de outros times chilenos, burlando o regulamento. Esse não foi o único caso de armação do certame. A arbitragem da batalha entre Vasco e River, a cargo do uruguaio Nobel Valentini, foi muito contestada pelos vascaínos e pela imprensa, principalmente por conta do gol anulado de Chico, em suposto impedimento. 

Nessa partida decisiva, o River necessitava da vitória. Foi o adversário, porém, que tomou as rédeas do confronto: “O Vasco da Gama, que devia ser o vencedor, não acusou pontos débeis em suas diferentes linhas, e realizou ontem sua melhor partida no campeonato”, apontou o jornal La Nación. Di Stéfano, eficazmente marcado por Wilson, só veio a tocar na bola aos 26 minutos. Barbosa pegou pênalti cobrado por Labruna, segurando o 0x0 e coroando sua bela passagem por Santiago. 

No Rio de Janeiro, uma multidão foi recepcionar o Vasco. Desfilando em carros abertos, rumo a São Januário, os heróis fizeram, finalmente, o seu carnaval. Na verdade, apenas alguns deles, porque outros tiveram de ir diretamente para Montevidéu, onde a seleção jogaria a Copa Rio Branco. O Vasco era a base do escrete nacional e o campeão dos campeões sul-americanos. Por isso, como diz o cântico mais ouvido em São Januário atualmente, uma das grandes glórias do Gigante da Colina “é relembrar o Expresso da Vitória”. 

Descontinuidade 

Além de espetáculo esportivo, o Campeonato Sul-americano de Campeões foi um movimentado evento social. O Colo Colo não mediu esforços para dar ares de festa à competição, promovendo homenagens e confraternizações. Antes de a bola rolar, houve concurso de cartazes e sorteio de viagens para quem comprasse ingresso de tribuna especial. Na cerimônia de abertura, as delegações desfilaram pelo campo do Estádio Nacional, entoaram os hinos de seus países e fizeram o juramento de “aceitar as derrotas com esportividade”. 

A promessa, contudo, não foi cumprida à risca. O jogo Colo Colo 3x2 Nacional ilustra bem isso. Enquanto perdia por 2 a 1, a equipe chilena atormentou o árbitro brasileiro Alberto da Gama Malcher, obrigando-o a interromper a partida e descer para o vestiário. Malcher só retomou seu serviço depois do bizarro apelo do presidente Robinson Alvarez, de microfone em punho: “Peço ao público que faça o sacrifício de ver atuando novamente este juiz”. Dias depois, Alvarez se retratou e até deu uma medalha a Malcher, mas o mal já estava feito. 

Antes do episódio, o Nacional ainda brigava pela taça. Seu descontentamento com o campeonato só não foi maior do que o do River Plate, que se sujeitou a um arranhão na lataria da “Máquina”. O próprio Vasco, embora campeão, não engolira os cambalachos do Colo Colo na inscrição de jogadores. Essa soma de insatisfações atrapalhou os planos de Robinson Alvarez, que não concretizou o desejo de organizar outra edição do torneio. Mas a semente de uma frondosa árvore já estava plantada. Hoje, em seu galho mais antigo, um condor move as asas. 


Clubes que participaram da competição 


Vasco da Gama (BRA)


Como chegou à competição

Campeão carioca de 1947
Time-base
Barbosa, Augusto e Wilson; Eli, Danilo e Jorge; Djalma, Maneca, Friaça, Ismael e Chico

Características

Individualmente muito forte, o time crescia quando diante de desafios mais difíceis. Não por acaso, suas melhores atuações foram contra o segundo, o terceiro e o quarto colocados
Resultado
Campeão
Situação atual
Sem títulos há cinco anos e fora da Libertadores desde 2001


River Plate (ARG)

Como chegou à competição
Campeão argentino de 1947
Time-base
Grisetti, Vaghi e Rodríguez; Yácono, Rossi e Ramos; Reyes, Moreno, Di Stéfano, Labruna e Loustau

Características

Quase todos os jogadores do time vinham das categorias de base do River. Sua escola era a do jogo coletivo, baseado na manutenção da posse de bola e em triangulações envolventes
Resultado
Vice-campeão
Situação atual
Não consegue ter o mesmo sucesso internacional do rival Boca

Nacional (URU)


Como chegou à competição

Campeão uruguaio de 1947
Time-base
Paz, Raúl Pini e Tejera; Santamaría, Rodolfo Pini e Cajiga; Castro, Gómez, Atilio García, Gambetta e Orlandi

Características

A dupla Walter Gómez/Atílio García mostrava muita eficiência, porém a zaga, segundo os críticos da época, era lenta e pesada. Tejera e Gambetta enfrentariam o Brasil em 1950
Resultado
Terceiro lugar
Situação atual
Tricampeão da Libertadores, perdeu espaço no cenário continental

Municipal (PER)


Como chegou à competição

Vice-campeão peruano de 1947 (o campeão, Atlético Chalaco, recusou o convite)
Time-base
Suárez, Cavadas e Perales; Colunga, Castillo e Celi; Hurtado, Mosquera, Drago, Guzmán e Torres

Características

Baixinhos e habilidosos, os “Tres Gatitos” Mosquera, Drago e Guzmán formavam o melhor núcleo da equipe, que tocava bem a bola, mas pecava pela falta de objetividade
Resultado
Quarto lugar
Situação atual
Caiu novamente para a segunda divisão do futebol peruano

Colo Colo (CHI)

Como chegou à competição

Campeão chileno de 1947
Time-base
Sabaj, Machuca e Pino; Urroz, Miranda e Muñoz; Aranda, Farias, Dominguez, Peñaloza e López
Resultado
Quinto lugar

Características

O time montado pelo ex-atacante Enrique Sorrel sentiu a pressão de jogar em casa e sofreu com a ausência do goleiro Misael Escuti, contundido
Situação atual
Vive boa fase e sonha em ganhar a Libertadores outra vez (já o fez em 1991)

Litoral (BOL)

Como chegou à competição
Campeão de La Paz em 1947
Time-base
Gafuri, Araoz e Bustamante; Ibañez, Valencia e Vargas; Sandoval, Rodríguez, Caparelli, Gutierrez e Orgaz

Características

Lutador e persistente, o limitado time do Litoral corria bastante. Muitos de seus jogadores defenderam a Bolívia na Copa do Mundo de 1950
Resultado
Sexto lugar
Situação atual
O período áureo do clube foi mesmo o fim dos anos 40. Depois, perambulou por divisões inferiores, até desistir de disputar qualquer campeonato, em 2003

Emelec (EQU)

Como chegou à competição

Convite. Vale frisar, porém, que, em 1946, o clube venceu o campeonato de Guayaquil e que o ano de 1947 foi atípico para a cidade, pois lá se realizou a Copa América
Time-base
Arias, Henríquez e Zurita; Riveros, Alvarez e Ortiz; Albornoz, Jiménez, Alcívar, Yepez e Mendoza

Características

Contava com jogadores rápidos, mas não ia muito além disso. Os destaques eram Henríquez e Alvarez, que chegaram a atuar na liga pirata colombiana
Resultado
Último lugar
Situação atual
Ainda é um dos clubes mais importantes do Equador