sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Cristóvão, PDA 88


            Em dezembro de 1987, comprei meu primeiro Jornal dos Sports. À época eu não sabia, mas a caminhada do moleque de 11 anos, por iniciativa própria, até a banca do Seu Lupércio, naquela distante manhã nublada, era um momento histórico, o início de um contato mais profundo entre o pequeno torcedor e a imprensa esportiva escrita. Eu já tinha certa intimidade com o rádio (José Carlos Araújo narrando o gol de Tita na final do Carioca de 87, um marco...), mas com os periódicos a proximidade começava ali. Naquela edição do velho jornal cor-de-rosa, alguns jornalistas elegiam a seleção JS do campeonato brasileiro daquele ano, a famosa Copa União. Aquilo despertou em mim alguma espécie de fascínio, que até hoje cultivo. Resolvi que também eu escalaria um onze ideal da competição, tarefa que estendi a todos os Brasileirões que acompanhei posteriormente.

            Um trabalho solitário, compartilhado durante anos com quase ninguém. Talvez eu tenha confidenciado algo ao Fábio, grande amigo de infância. Ou ao Leo, meu primo, que, avesso a futebol, acusava-me de decorar o conteúdo das edições de Placar só para ficar exibindo conhecimentos futebolísticos depois. Mas, ainda que eu tenha revelado algo a eles, não dividi o trabalho. Minucioso trabalho, diga-se. Cheguei ao requinte aparentemente doentio de dar um nome ao “prêmio” ignorado por toda a humanidade. Se a Placar, como eu descobriria poucos meses depois daquele verão 87/88, tinha a sua Bola de Prata, eu teria o PDA. Prêmio Danilo Alvim.

            Mas por que cargas d’água Danilo Alvim? O leitor deste blog há de conhecê-lo. Trata-se do Príncipe, center-half do Expresso da Vitória e titular na Copa de 1950. Eu já lera a respeito da nobreza de sua estirpe e achei que, com seu nome, o “cobiçado laurel” ganhava peso.

            Como em 87 a ideia surgiu somente depois da decisão do certame nacional, foi em 88 que as escolhas do PDA passaram a ser frutos de observações mais detidas ao longo de todo o campeonato. A essa altura, eu já me tornara um ávido leitor de Placar, e era natural que as notas dadas pela revista aos concorrentes da Bola de Prata influenciassem os meus conceitos pré-adolescentes, numa época muito anterior à onisciência do PFC. No entanto, eu apreciava manter a independência do prêmio por meio de algumas firmes discordâncias. Por isso, se endossei a Placar na zaga, por exemplo (Aguirregaray, do Inter, e Pereira do Bahia), dela me desviei nas pontas (Robertinho e Edivaldo nos lugares de Vivinho e Zinho!). Uma das outras diferenças entre as minhas opções e as da Placar residiu no meio-campo: eu escalei Cristóvão (Grêmio) na cabeça-de-área, posição que teve Paulo Rodrigues (Bahia) como Bola de Prata.

            Na verdade, Cristóvão jogava como segundo homem numa região central gremista habitada ainda por Bonamigo e Cuca. Mas, como eu não queria abdicar de Geovani, recuei Cristóvão para o posto de volante. O meia do tricolor gaúcho também não podia ficar de fora – eu me convencera disso ao assistir na TV a Flamengo 0x1 Grêmio, pelas quartas-de-final, no início de 1989 (sim, o Brasileirão de 88 terminou no ano seguinte). Elegante, clarividente e operário, naquela noite Cristóvão se multiplicou com leveza e agilidade no gramado do Maracanã. Uma atuação que ajudou o garoto de 12 anos a moldar sua definição de meio-campista.

            O Grêmio tombaria nas semifinais para o maior rival, naquele que ficaria conhecido como o “Grenal do século”, mas a impressão que Cristóvão me deixara nas quartas garantiu-lhe uma vaga no escrete do PDA. Sebastião Lazaroni, então técnico da seleção, também deve ter gostado das performances do meia, já que o convocaria, poucos meses depois, para a Copa América.

            Depois da passagem pela Portuguesa, já em fim da carreira, Cristóvão sumiu do meu modesto mapa. Eu só voltaria a ouvir falar dele no fim de julho de 2011, dias depois do grave problema médico de que Ricardo Gomes se acometera. Eu estava na loja de ferragens do portuga Luís, point de notícias cruzmaltinas mais férvido que sites especializados. Angustiado, indaguei:

            − E quem vai entrar no lugar do Ricardo, por enquanto?

            − É o auxiliar dele, o Cristóvão − respondeu o filho do lusitano −, um ex-jogador aí, acho que do Fluminense...

            − Ah, sei... Jogou no Grêmio, né?

            De fato, era ele, o volante improvisado do PDA 88. Simples, discreto, sereno, salário bem menor que os dos figurões do ofício, Cristóvão foi aplacando minha desconfiança inicial. E fui reconhecendo, na desenvoltura e na lucidez peculiares à sua forma de se expressar, a mesma habilidade, a mesma inteligência que eu vira pela TV, num Flamengo x Grêmio do passado.

            Com Cristóvão, o Vasco chegou pela primeira vez entre os cinco primeiros do Brasileirão neste século. Com Cristóvão, o Vasco chegou às semifinais da Sul-Americana, mesmo estando muito envolvido com o Brasileiro. Com Cristóvão, o Vasco fez uma ótima Libertadores, em seu retorno à competição após onze longos anos. Com Cristóvão, o Vasco se mantém entre os quatro primeiros do Brasileiro 2012, mesmo depois das terríveis perdas de Rômulo, Allan e, principalmente, Diego Souza e Fágner. O vascaíno já tem, portanto, motivos para acreditar que, com Cristóvão, o Vasco pode continuar disputando coisas grandes. É claro que a exasperação com uma ou outra mania (uma leve retranquite, Diego Rosa etc) sempre vai haver, isso é comuníssimo no comportamento da torcida. Mas xingar recorrentemente um técnico que vem, há quase um ano, contornando problemas e levando o Vasco para cima parece injustificável.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

De medalhistas a medalhões*


A seleção olímpica de 1988 jogou um futebol agradável de se ver e transformou alguns jogadores em ídolos nacionais


Em 1988, o futuro do futebol brasileiro era uma interrogação. O ocaso da geração de Zico, Sócrates e Falcão parecia indicar que os anos sem título mundial se multiplicariam. A bagunça do início do campeonato brasileiro daquele ano – alguns clubes contestaram o regulamento, que previa pênaltis em caso de empate – completava o cenário desolador. Era necessário que algo diferente e empolgante acontecesse. E aconteceu.

Sob o comando de Carlos Alberto Silva, a seleção olímpica ganhou a medalha de prata em Seul, praticando um futebol capaz de provocar, no Brasil, um entusiasmo equiparável ao de uma Copa do Mundo. E não era fogo de palha, não – apagada a pira de Seul, a chama daquela nova geração permaneceria viva, atingindo a temperatura máxima na final da Copa de 1994. Taffarel, Jorginho, Bebeto, Romário e Mazinho, que enfrentaram a Itália de Baggio em Los Angeles, tinham estado seis anos antes em Seul.

A qualidade desses jogadores explica, em parte, a espontânea e calorosa adesão popular à torcida pelo time de 1988. A outra parte da explicação fica por conta do contexto da época. Todos os integrantes da equipe defendiam, no primeiro semestre de 1988 (a Olimpíada começou em setembro), clubes brasileiros, o que facilitava a empatia. Além disso, não havia limite de idade para os convocados, portanto o time não se parecia tanto com uma “seleção de novos” quanto em outras Olimpíadas. Não ter participado de Mundiais era o único pré-requisito para ir aos Jogos.

Outro dado que talvez ajude a esclarecer por que tanta gente madrugou naquele já distante setembro tem a ver com a política. A promulgação da nova Constituição brasileira ocorreria quatro dias depois da decisão do futebol olímpico. A primeira eleição presidencial direta pós-ditadura se aproximava. Respiravam-se ares de redemocratização e esperança. Cada gol de Romário em Seul era comemorado no Brasil com uma inocência que, hoje, parece perdida.

Era outro tempo, sem dúvida. Um tempo em que reunir a seleção por quase três meses era possível. Entre amistosos e torneios, o time olímpico disputou doze partidas em sua longa e caótica preparação, que começou na Austrália e passou por Europa e Estados Unidos, antes de chegar à Coreia do Sul. Nesse meio tempo, o técnico Carlos Alberto Silva reclamou da escassez de informações sobre as seleções que o Brasil encararia na primeira fase da Olimpíada. A muito custo, ele havia conseguido, na Áustria, uma fita da Iugoslávia, mas sua transcodificação custava muito caro. Vinte anos depois, o problema tem cara de pré-história.

Mas nem tudo está tão diferente. A cessão de jogadores que atuam no exterior já era complicada. Valdo e Ricardo Gomes não foram liberados pelo Benfica, que exigiu garantias financeiras com as quais a CBF não quis arcar. A distância entre o futebol e as outras modalidades olímpicas também já existia – o Brasil disputou a primeira fase na cidade de Taejon (onde, segundo o ex-jogador Neto, comeu-se muito cachorro), e houve jogos das demais chaves em Taegu, Pusan e Kwangju, enquanto todos os outros esportes se fixaram em Seul.


Os “pratagonistas” do time


“Ele nunca soltava a bola errado”, lembra o técnico Carlos Alberto Silva. “Ele era o cimento da equipe”, metaforiza o preparador físico Bebeto de Oliveira. Ambos estão falando de Geovani, o capitão do time, que não chegaria a disputar nenhuma Copa, mas que, em 1988, desfrutou do status de maior craque do futebol brasileiro. Autor do gol que eliminou a Argentina nas quartas-de-final, o habilidoso meia tomou o segundo cartão amarelo na semifinal diante da Alemanha e desfalcou o Brasil na decisão contra a URSS, tal como o cabeça-de-área Ademir. “A ausência desses dois titulares foi crucial”, comenta Carlos A. Silva. “Tínhamos muito pouco tempo para treinar uma nova formação; o meio-campo perdeu um pouco a pegada”, arremata o treinador.

Se Geovani era o pilar do meio, atrás esse papel coube a Taffarel. “Existia um tabu de que goleiro só servia para a seleção depois dos 26 anos. Ali se consagrou um com 19”, diz o técnico, subtraindo três anos da verdadeira idade de Taffarel em 1988. O gentil equívoco talvez tenha sido uma inconsciente retribuição aos três pênaltis defendidos (um no tempo normal e dois após a prorrogação) na partida mais difícil e emocionante da campanha, frente à Alemanha de Hässler e Klinsmann.

Além de Taffarel, sobressaiu na defesa o zagueiro André Cruz, que completou 20 anos no dia da vitória sobre a Austrália, válida pela primeira fase. Nessa partida, assim como na seguinte, contra a forte Iugoslávia, Cruz atuou improvisado na lateral-esquerda. E foi dali que, diante dos iugoslavos, munidos de Katanec, Stojkovic e Suker, o ponte-pretano anotou um espetacular gol de falta, abrindo o marcador. Sua presença no torneio só não foi impecável devido ao deslize que ofereceu a Savichev uma clara chance de fazer 2 a 1 na prorrogação da final. O atacante soviético aproveitou bem, encobrindo Taffarel.

Na visão de Neto, o posto de destaque individual brasileiro em Seul fica dividido entre o loirinho gaúcho e um certo tampinha carioca, que fez sete gols na competição e despertou a cobiça de clubes europeus. “Romário é o melhor de todos os tempos, depois de Pelé”, opina o comentarista da TV Bandeirantes. Bebeto de Oliveira ressalta uma característica que o Romário mais maduro perderia: “O grande craque de anos depois não se comparava àquele menino, com aquela velocidade fantástica”.

Com tantos aspirantes a estrela, a vaidade atrapalhava? “Não, o ambiente era sensacional, embora eu não acredite muito nesse negócio de união”, avalia Neto, que via Andrade, o mais experiente do grupo, como um ídolo: “Eu tinha até vergonha de falar com ele”, conta. O volante flamenguista acabara de ser vendido ao futebol da Europa, destino comum a grande parte dos que foram aos Jogos Olímpicos de 88. Comparado aos padrões atuais, o êxodo foi tímido e lento, mas, até aquele desfecho de anos 80, não tinha havido nada igual.

Alguns medalhistas, como Andrade e Geovani, não tiveram sucesso no exterior, e outros bons jogadores acabaram não se firmando como figurinhas carimbadas, casos do zagueiro Batista, do meia Mílton e do atacante Careca. O saldo geral da geração Seul, porém, foi bastante positivo e confirmou o valor do trabalho de renovação desenvolvido por Carlos Alberto Silva. Só ficou faltando o ouro. O ponta João Paulo, que entrou no lugar de Bebeto durante a final, resume o que passou pela sua cabeça no pódio: “A sorte não ajudou. Tínhamos um time superior, pressionamos, perdemos gol. Na hora, foi uma grande decepção. Mas hoje a gente vê que a medalha de prata representou muito”.

*Escrevi esta matéria para a Revista Trivela, edição de agosto de 2008. A versão da revista está um pouco modificada e mais curta, devido à edição.