sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O preço do desprezo

            Quando um clube brasileiro consegue conquistar o Mundial, muitos têm a impressão de que seu desdém em relação ao campeonato brasileiro do mesmo ano foi um fator decisivo para o triunfo planetário. Vira quase consenso a ideia de que priorizar o torneio da Fifa, abdicando de todo o resto, foi uma estratégia inteligente, muito bem calculada.

Quando, porém, a taça do mundo se desintegra, constata-se que o tão louvado foco de nada adiantou. A concentração absoluta não se revela, no fim das contas, um plano infalível. E, então, o torcedor lamenta todos aqueles meses de amistosos insossos, todas aquelas possibilidades de êxito doméstico jogadas fora.

No caso específico do Atlético Mineiro, derrotado anteontem pelo Raja Casablanca, o vazio do arrependimento é ainda mais profundo e aterrador. Além de não ter experimentado sequer o sabor de ver seu time enfrentar o campeão europeu, o torcedor do Galo ainda precisa lidar com o fato de ter sido o próprio Atlético um dos responsáveis indiretos pela esmagadora performance do Cruzeiro no Brasileirão – afinal, os comandados de Cuca formavam, possivelmente, a única equipe capaz de produzir um embate parelho com o rival na tabela.

Contudo, como se sabe, o Galo não levou a sério a chance de abocanhar um título que, diga-se de passagem, não obtém desde 1971. A festança da Libertadores se estendeu em demasia e, mesmo depois da ressaca, não houve comprometimento com a causa do Brasileirão. Tampouco com a da Copa do Brasil, cujo caneco não figura no currículo atleticano. O sonho do Mundial, equivocadamente, eliminou outras ambições, amaciou pressões.

Marrocos era o oásis depois do desértico segundo semestre. O time estava com crédito até chegar ao vermelho Bayern, que derrotara o Cruzeiro no Mundial de 1976 e, desta vez, sucumbiria diante da verdadeira força de Minas ─ assim pensava a grande massa atleticana. Mas, como vimos, tudo não passou de miragem. Restou a sede de ter vivido mais intensamente um período que, para o vizinho, foi glorioso. 
 

Tradição aziaga 

Antes do Atlético-MG, outros clubes brasileiros já haviam desperdiçado suculentas fatias de suas temporadas em nome de uma frustrante bocada de fim de ano. Abaixo, uma lista de bons times que poderiam ter vencido o Brasileirão em anos nos quais se dedicaram exclusivamente ao Projeto Tóquio, Marrakech etc. 

VASCO – 1998

Tão bom quanto o campeão nacional de 97, o Vasco de 98 poderia, até com certa facilidade, ter se classificado para as quartas-de-final daquele campeonato anterior à era dos pontos corridos. E teria, certamente, avançado mais. A orientação advinda da diretoria, no entanto, era clara: prioridade absoluta para o embate com o Real Madrid. Quanto maior fosse o tempo de preparação, melhor. O décimo lugar se encaixou na proposta, mas o jogo do Vasco não encaixou em Yokohama. 
 

PALMEIRAS – 1999

Pode um time que aplica, no mesmo campeonato, 6 a 0 sobre o Grêmio e 6 a 0 sobre o Botafogo ficar ausente da briga pelo troféu? Pode. Em 1999, o Verdão de Felipão não fez muito esforço para se classificar entre os oito que rumariam para a segunda fase ─ alcançou, como o Vasco do ano anterior, a décima colocação. Assim, pôde ficar 20 dias pensando apenas no Manchester United. Talvez tivesse sido melhor não pensar tanto, já que perdeu para o time de Ferguson e viu o arquirrival se sagrar campeão brasileiro.
 

INTERNACIONAL – 2010

O Inter de Celso Roth estava longe de ser brilhante, mas os outros concorrentes ao título brasileiro de 2010 também não eram. Com o elenco de que dispunha, podia ter lutado pela taça. Mas a esperança de bisar o feito de 2006 obnubilou o ímpeto de vencer no certame caseiro. O Colorado acabou ficando apenas em sétimo no Brasileirão e, no Mundial, fracassou ante o Mazembe. 
 

SANTOS – 2011

Em determinado momento do Brasileirão 2011, os postulantes ao título passaram várias rodadas tropeçando sucessivamente. Nenhuma equipe parecia ter força suficiente para arrancar e se impor na competição. Estivesse um pouco menos inebriado pelo sonho de bater o Barcelona no Mundial, o Santos, munido de Neymar em fase esplêndida, poderia ter brigado pela taça nacional. Acabou sendo massacrado pelo Barça de Guardiola.

domingo, 2 de junho de 2013

Santa em ascensão


            Na era pós-Copa União (depois de 1987, portanto), poucas fatias da federação fora do chamado “eixo Rio-São Paulo” colocaram mais de dois times na Série A. Foram elas Pernambuco (apenas em 93), Minas Gerais (em 93, 98, 2000, 2001, 2008 e 2011), Paraná (dez vezes entre 93 e 2005) e Rio Grande do Sul (de 95 a 2007, excetuando-se 2005). No ano passado e na atual versão do campeonato de elite, as portas desse seleto clubinho têm se mantido trancadas, mas há um aspirante a sócio forçando a entrada. Trata-se de Santa Catarina, estado com um time na Série A de 2013 (Criciúma) e presença maciça na Série B (Avaí, Figueirense, Joinville e Chapecoense).

            No biênio 2003-04, com Figueirense e Criciúma na primeira divisão, e em 2011, com Figueirense e Avaí, o futebol catarinense esteve, aparentemente, num estágio até superior. Não havia, contudo, uma quantidade tão expressiva de representantes na Série B. Em 2012, já eram três, e todos ficaram entre os seis primeiros. Indubitavelmente, um ótimo desempenho. No fim das contas, subiu apenas o Criciúma, mas as rodadas iniciais da Série B 2013 indicam que o número pode aumentar desta vez.

            Mesmo a Chapecoense, advinda da Série C – de onde também emergiram Criciúma e Joinville, em anos recentes – tem conseguido angariar boa pontuação neste começo de certame, o que torna as projeções catarinenses para 2014 muito positivas. Com uma das vagas para a Série A de 2014 teoricamente reservada para o gigante Palmeiras, restam três para sonhos que vêm de todos os cantos de Santa Catarina – norte (Joinville), sul (Criciúma), leste (Avaí e Figueira) e oeste (Chapecoense).

            Tais esperanças não são frutos de devaneios megalômanos. Nas últimas temporadas, os clubes catarinenses têm, esporadicamente, se atrevido a interpretar papéis mais importantes na cena nacional. Os principais atores desse crescimento paulatino são os emblemas da capital, Figueirense e Avaí. O primeiro chegou à final da Copa do Brasil em 2007 e terminou o Brasileiro de 2011 na 7ª posição, depois de ter flertado, e quase se acasalado, com a Libertadores. O rival atingiu a semifinal da Copa do Brasil em 2011, dois anos depois de ter obtido um espantoso 6º lugar no Brasileirão. Não são façanhas tão portentosas quanto a conquista do Criciúma na Copa do Brasil de 1991, mas, diferentemente desta, parecem ligadas a um processo de evolução gradativa. O caso de 91 foi mais particular, resultado da simbiose entre a cidade do carvão e um certo Felipão, que iniciava ali sua trajetória rumo ao posto de rei do mata-mata.

            O futebol barriga-verde vem encorpando de grão em grão, e o campeonato estadual é reflexo disso. Não que a federação catarinense tenha grande mérito em sua organização – muito pelo contrário. Basta lembrar o ridículo vice-campeonato do Figueirense no Catarinão de 2012, após ter faturado ambos os turnos. A competição tem progredido naturalmente por outras razões, entre as quais figuram o equilíbrio e o interesse do público.

            No primoroso blog Futrankings, estudo estatístico de Tomaz Alves aponta o campeonato catarinense como, historicamente, o mais parelho do Brasil. A variedade de campeões sempre foi maior do que em outras praças, o que explica, bem resumidamente, a liderança no meticuloso ranking. De fato, ainda hoje, há sempre cinco equipes – Figueirense, Avaí, Joinville, Criciúma e Chapecoense – que entram no torneio com chances reais de título. Em que outro torneio local isso se observa? Alguém pode mencionar a Bahia, que teve Colo-Colo e Bahia de Feira como campeões recentes. Ou o Espírito Santo, estado em que, após décadas de domínio dividido entre Rio Branco e Desportiva, apareceram novos levantadores de taça, como Aracruz e São Mateus. Esses casos, porém, são bem diferentes, já que envolvem zebras ocasionais ou emergentes desprovidos de tradição. No Catarinão, os componentes do quinteto que está no poder trajam camisas com pesos não muito díspares entre si e compartilham 41 dos últimos 42 troféus disputados – 4 erguidos pela Chapecoense, 7 pelo Avaí, 9 pelo Criciúma, 9 pelo Figueirense e 12 pelo Joinville. O único intruso desse período foi o Brusque, vencedor de 1992.

            Se metade dos participantes de um estadual tem condições de ganhá-lo (10 clubes jogam o Catarinão), a atração por ele exercida tenderá a ser maior do que a de outro campeonato cujos verdadeiros concorrentes ao título não passem de 20% do total. Assim, embora não tenha se notabilizado por grande entusiasmo, o estadual de Santa Catarina contou, em 2013, com média de público superior à do carioca, à do gaúcho e à do paranaense, por exemplo.

            O ambiente competitivo do Catarinão o afasta um pouco da feição decadente que os regionais assumem Brasil afora. E, de certa forma, ajuda a azeitar os times da casa com vistas aos embates nacionais. É claro que o campeonato doméstico poderia ser mais próspero e contagiante se não houvesse tanta gente em Santa Catarina torcendo para times de outros estados. Esse é um problema crônico do futebol barriga-verde. Pesquisa encomendada pela Revista Placar em 1983 já dizia que “entre os 61% dos habitantes adultos das regiões urbanas de Santa Catarina que se interessam por futebol, nada menos que 41% não torcem  para nenhum clube do estado – a porcentagem mais alta entre todas as demais regiões do país”.

            O visual de estádios como o Heriberto Hülse, a Arena Joinville e o Orlando Scarpelli em dia de jogo e os bem-sucedidos programas de sócio-torcedor do Joinville e da Chapecoense parecem sinalizar que existe um movimento no sentido contrário. Estariam os catarinenses mais apegados aos clubes de sua terra do que há trinta anos? Ou ainda os enxergam como simpáticos “segundos times”? Levantamentos feitos nos últimos anos mostram que o apelo dos grandes centros mantém-se bem maior que o das forças caseiras. No entanto, deve-se considerar que pesquisas sobre torcida não têm sido o ponto forte dos institutos especializados. Dá para desconfiar.

            No momento em que este texto chega ao seu derradeiro parágrafo, termina o jogo em São Caetano do Sul: Azulão 0x1 Chapecoense. O triunfo fora de casa nesta noite de sábado deixa o Índio na vice-liderança da Série B, após três rodadas. Todos os outros membros do G-4 são, neste momento, de Santa Catarina – o Figueirense encabeça a tabela, o Avaí ocupa o terceiro posto e o Joinville completa o grupo. Se o atual quadro se conservasse intacto até dezembro – quase impossível −, a Série A de 2014 reeditaria 1979, quando Criciúma, Joinville, Figueirense, Chapecoense e Avaí estiveram na primeira divisão, à época disputada por quase uma centena de agremiações. Pôr cinco clubes entre vinte é outro papo. Mas existe, sim, a possibilidade de Santa Catarina ser, na próxima temporada, o único estado, além de Rio e São Paulo, com mais de dois representantes na Série A.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Maior que Mourinho

 Técnico português agride o futebol mundial ao privá-lo das exibições de  Kaká, um dos grandes jogadores deste século
 
            Às vésperas do mais aguardado embate das oitavas-de-final da Champions League (Real Madrid x Manchester United, naturalmente), Alex Ferguson deve estar aflito com a fraquíssima atuação diante do limitado Fulham. Preocupa-o, também, a volúpia com que o ex-pupilo Cristiano Ronaldo irá para cima de uma defesa que, nesta temporada, tem se revelado um tanto frágil. Mas há algo que conforta sir Alex, e não estamos falando da capacidade nem da experiência do ótimo duo Rooney / Van Persie. Tampouco se trata do fato de o Man Utd jogar a segunda partida em Old Trafford. O alento de Ferguson consiste na probabilíssima ausência, em ambos os duelos, de alguém que, num passado nem tão distante assim, derrubou implacavelmente a sua fortaleza, fazendo dois fantásticos gols em Manchester e mais um em Milão.
 
            O ano era 2007, e o demolidor em questão era Kaká, que, meses depois da semifinal de Champions League contra a equipe de Ferguson, seria eleito o melhor jogador do mundo. Naquela edição da copa continental − da qual foi artilheiro, com 10 gols −, Kaká já fizera um golaço contra o Celtic, conduzindo o Milan às quartas. E voltaria a ser decisivo na final, construindo uns ¾ do tento de Inzaghi, o segundo da vitória de 2 a 1 sobre o Liverpool. Revanche da decisão de 2005, em Istambul, na qual, diga-se de passagem, Kaká foi o melhor do primeiro tempo arrasador do Milan. O assombroso lançamento para um dos gols de Hernán Crespo está, tal como o rush que provocou a estrambótica colisão de defensores do Manchester United em 2007, no numeroso rol de grandiosas jogadas de Kaká na mais importante competição clubística do planeta.
 
            Ninguém poderia prever que, seis anos depois, um jogador desse naipe, aparentemente em boas condições atléticas (recentes aparições na seleção brasileira o atestam), estaria encostado numa interminável suplência. Nas duas últimas temporadas, o Real Madrid abdicou, em etapas bem avançadas da Champions League, de um craque talhado para batalhas intensas e cruentas. Não há explicação técnica para a predileção por Di María, Modric, Benzema ou Higuaín, principalmente em situações extremas. Nem o ótimo Özil justifica um Kaká preterido. Poderia haver algum componente físico envolvido; os cinco concorrentes, afinal, são mais jovens e têm jogado com frequência maior; no entanto, como adquirir ritmo de jogo se, com a liga nacional perdida e com a vaga na próxima Champions League praticamente assegurada, o técnico não o escala nem contra o Granada?
 
            Não é novidade que, por trás desse desprezo, há muito mais do que meras opções táticas. Matérias como a do jornal El País levantaram suspeitas sobre a isenção de Mourinho na hora de selecionar quem vai a campo. Caso a influência do poderoso empresário Jorge Mendes – agente de Mourinho e de vários jogadores do time merengue – realmente interfira na relação entre o treinador lusitano e seus comandados, como afirma o pai de Kaká na referida reportagem, a subutilização de Kaká entra numa seara nebulosa e repulsiva. Prefiro acreditar em incompatibilidade de gênios, fogueira de vaidades, implicância tacanha, qualquer fator extracampo verossímil que combine com o egocentrismo de Mourinho e afaste a teoria conspiratória. Porque esta, se comprovada, poderia resultar até em constrangimentos para Scolari, cujas negociações no exterior são conduzidas por Jorge Mendes. Como se sabe, Kaká não foi convocado para o amistoso contra a Inglaterra, mesmo tendo jogado muito bem nas últimas partidas da seleção em 2012. Suas atuações sob a batuta de Mano Menezes geraram, inclusive, embaraço para Mourinho, já que o óbvio ficou mais ululante: Kaká não é um traste. 

            O tratamento a ele dispensado, porém, tem sido esse. Não me recordo de outro boicote tão absurdo, que tenha subtraído tanto tempo de jogo de um craque. É uma pena, por exemplo, que, nos confrontos entre Real e Barcelona dos últimos tempos, muitos deles épicos, Kaká não tenha recebido grandes oportunidades. Enquanto Messi e Cristiano Ronaldo puderam aproveitar um período mágico dessa rivalidade, ao meia-atacante brasileiro essa chance foi negada. E ele não foi a única vítima dessa privação – quem aprecia futebol há de ter sentido sua falta. Quem viu Milan 3x0 Manchester United, jogo de volta das semifinais da Champions League 2006/7, sabe do que estou falando. Ferguson estava ali, bem perto, e sabe muito bem. Mas não está sentindo falta alguma.