sábado, 12 de julho de 2014

Marcelo, o elo

Entre os técnicos brasileiros, o cruzeirense seria a melhor escolha para o atual cenário

            Será que, depois do murro que deixou o futebol brasileiro sem sentidos, ainda haverá quem defenda a tese de que apenas o resultado tem relevância? O título de 2002, conquistado com um time que também tinha um estranho vazio no meio-campo – mas que, com sorte, clima de família, atacantes portentosos, laterais fortes e adversários medíocres, acabou levantando a taça – havia deixado a impressão de que o caminho do minimalismo era cômodo e suficiente. Por que convocar Alex e Juninho Pernambucano e ter o trabalho de arquitetar um jogo mais engenhoso, se a vitória podia vir com voluntariosos cabeças-de-área e jogadas epifânicas do poderoso ataque? O êxito na Ásia fermentou em demasia a receita do pragmatismo absoluto. Se vencíamos daquele jeito, devia estar tudo certo por aqui. Calendário? Base? Regulamentos? Presença nos estádios? Estudos táticos? Patacoadas. Somos malandros, sabemos como fazer.

            Foi necessário tomar uma pancada traumatizante. De outra forma, qualquer reflexão mais profunda seria sufocada pelo velho discurso prepotente. Em meia hora, a seleção alemã exprimiu, na linguagem dos gols, o que pessoas sérias, que amam de verdade o futebol, já vinham dizendo há tempos. A diferença é que os sete tentos entraram em todos os lares do Brasil. Pregaram um evangelho que muitos ainda não tinham podido ouvir. Sem versão repaginada, sem filtro global, sem campanhas patrocinadas, sem o alarido dos continuístas, sem o teatro mambembe das coletivas, sem o sono que confunde a mente no segundo tempo do jogo pós-novela.

            Para alguns, o aniquilamento que se viu no Mineirão não foi o bastante. A CBF, por exemplo, acena com a possível manutenção da comissão técnica da seleção. Talvez a cavalar dose de absurdo contida nesse posicionamento advenha justamente da patente necessidade de mudança − se aceita a obviedade ululante, a entidade avaliza o clamor por uma reestruturação cujo principal alvo seria ela própria. Então, melhor fingir que não entendeu o que se passou. Está tudo bem. Temos os melhores jogadores. Um técnico vencedor, rei do mata-mata. Estaduais invariavelmente aprovados pelos presidentes das federações. Árbitros preparados, estádios confortáveis. Um reles resultado adverso não pode estragar um trabalho de anos e anos. Muitos anos. Décadas.

            Ainda não dá para saber se tal cinismo prevalecerá ou se as pressões da opinião pública demoverão os detentores do poder. No segundo caso, as discussões acerca do perfil de quem deve assumir a seleção têm espaço importante na pauta de reformulações. Já passou da hora de o Brasil voltar a praticar, num Mundial, o que dele se espera: um futebol envolvente e contagiante, munido de recursos diversificados, apuro tático, criatividade, fluidez. Portanto, a escolha de um novo técnico deve se coadunar com essa necessidade. A gente não quer só taça erguida. A gente quer taça erguida, fruição e arte.

            Apesar dos recentes títulos de Brasileiro, Libertadores e Mundial, credenciais significativas para um postulante ao cobiçado cargo, Tite não parece ser o homem talhado para fazer uma equipe jogar um futebol vistoso, com pitadas de encantamento. Muricy Ramalho e Abel Braga também têm boas coleções de conquistas, mas esbarram na mesma limitação. O problema de Luxemburgo é distinto: alguns dos times por ele comandados encheram os olhos, como convém aos grandes esquadrões, mas o elixir que ele fabricava escorreu por algum ralo há cerca de 10 anos.

            Descartados os figurões do ofício, sobram a alternativa estrangeira ou a aposta em um nome menos badalado do circuito nacional. A primeira opção entre os forasteiros seria, claro, Guardiola, mas talvez ele não deseje abandonar o Bayern a curto prazo, e a questão é urgente (para todo o país, menos a CBF). Afora Pep, não haveria tantas soluções vindas do exterior. Embora Mourinho pudesse causar impacto, o tipo de jogo por ele proposto não satisfaria a sede de fascínio do brasileiro que realmente gosta de futebol.

            Entre os técnicos brasileiros sem tanta grife, Marcelo Oliveira preenche as exigências do atual momento histórico. Ele poderia ser o elo entre a intimidade com o futebol moderno e a estima pela magia do passado. Magia presente num certo Brasil 8x0 Bolívia de 14 de julho de 1977, que qualificou a seleção para a Copa do ano seguinte. Essa foi a mais importante das sete partidas de Marcelo pela seleção, e ele assinalou o último gol. A assistência foi de Reinaldo, de calcanhar. O atual técnico do Cruzeiro acabou não sendo chamado para o Mundial da Argentina. Vejamos por que ele atende aos requisitos para ir ao da Rússia:

1- Marcelo sabe selecionar
As convocações das últimas Copas foram bem problemáticas. Este já é o segundo Mundial seguido em que o técnico olha para o banco e fica desolado. No Cruzeiro, a situação é oposta: Marcelo encontra entre os reservas um farto rol de substitutos à altura dos titulares. Isso se dá graças à sua habilidade para indicar contratações. Enquanto outros técnicos incham o elenco apontando vários medalhões decadentes que, depois de poucos meses sem brilho, ficam encostados, Marcelo consegue, com o olho clínico de quem trabalhou em categorias de base, prover ao time as peças certas. Ricardo Goulart, Éverton Ribeiro e William, que se entenderam muito bem em 2013, são ótimos exemplos disso. Os três se revezaram com os veteranos Dagoberto, Borges e Júlio Baptista, numa mescla equilibrada que proporcionou ao Cruzeiro seu mais importante troféu recente. É simples: selecionador precisa saber selecionar. E Marcelo sabe.

2- Marcelo é sereno
Chega de treinadores beligerantes. As entrevistas coletivas se transformam em combates verbais repletos de estocadas, alfinetadas, ironias e desconfiança mútua. A seleção anseia por um técnico que não necessite de inimigos. Nem na imprensa, nem na arbitragem. Um técnico que poupe suas energias para criar estratégias, examinar os oponentes, incrementar o jogo de sua equipe. Marcelo se encaixa nesse perfil. Seus depoimentos, mesmo em circunstâncias estressantes, costumam ser tranquilos e lúcidos.

3- Marcelo aprecia o futebol bem jogado
            “Nosso time é calculista, mesmo”, disse Muricy ao fim de Botafogo 0x2 São Paulo, partida crucial do Campeonato Brasileiro de 2007. Era o auge do Muricybol, “método” vencedor e chatíssimo. O Corinthians de Tite e o Fluminense de Abel também não eram agradáveis de se ver. A medonha inclinação dos campeões brasileiros para um futebol feioso deu uma pausa no ano passado, quando o Cruzeiro, sob a batuta de Marcelo Oliveira, fez exibições empolgantes. Das 20 equipes da Série A de 2014, a da Raposa é talvez a única que não fica refém da correria ou do chuveirinho, pois se sente à vontade para tabelar pelo meio e cria espaços para o arremate de longa distância. Marcelo valoriza o casamento de estilos individuais, e o que se vê em campo é um conjunto entrosado, harmonioso. O Coritiba de 2011 também contava com essas valências.

4- Marcelo aplicou 6 em Felipão
            Na Copa do Brasil de 2011, o Coxa esmagou o Palmeiras, no Couto Pereira. Quatro gols no primeiro tempo e mais dois no segundo decretaram a segunda pior derrota de Scolari em sua carreira de treinador.

5- Marcelo está em alta
            Futebol é momento, diz o axioma. Assim como os jogadores, técnicos têm fases. Em 2010, Dorival Júnior vinha de trabalhos bem-sucedidos em grandes clubes e montou um Santos cintilante. Fazia sentido, à época, cogitá-lo para a seleção. Ele estava com confiança. Hoje, ninguém pensaria em indicá-lo. Marcelo Oliveira está em alta há alguns anos. Deve-se aproveitar a fase boa de um técnico competente. É mais sensato do que pinçar um novato com fama (como Falcão e Dunga) ou jogar as fichas num expoente ultrapassado. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Amanhã não é 23


Felipão fala em “12, 13, 14”, mas a verdade é que, dos 23 jogadores por ele convocados, pouquíssimos deverão atuar no Mundial de 2018
 

            Felipão deu pistas, na entrevista coletiva de hoje à tarde, de que acalenta a esperança de dirigir a seleção em mais um Mundial. Seria um contrassenso. Por muito menos, vários outros treinadores de seleção foram demitidos. Mas digamos que a CBF, afeita a ideias descabidas, comprasse o sonho. Teria o “gaúcho de bigode”, como diz a propaganda de um refrigerante, coragem de levar, para o Mundial da Rússia, a base do time humilhado em 2014?

            Crê-se que não, apesar de ele próprio ter preconizado que 12, 13 ou 14 atletas do atual plantel estarão na próxima Copa. E, se houver mudança no comando – essa é a consequência normal para a calamitosa derrota de ontem −, fica ainda mais forte o pendor para mudanças substanciais no grupo de jogadores.

            Leia, abaixo, análises sobre as perspectivas dos 23 escolhidos de Felipão quanto à disputa da Copa de 2018. Os que vêm acompanhados de um NÃO parecem cartas fora do baralho. DIFICILMENTE, POSSIVELMENTE, PROVAVELMENTE e SIM são os outros graus da escala estabelecida.

            É importante salientar que a avaliação aqui realizada tomou como certa a substituição no cargo de treinador. Adiantamos que há apenas um SIM e um PROVAVELMENTE na lista. Há quatro ocorrências de DIFICILMENTE, seis de POSSIVELMENTE e onze de NÃO.
 

Júlio César - NÃO

O ciclo do titular brasileiro em duas Copas acabou. Carreira clubística decadente e idade pesam, mas a certeza do fim da linha também vem do fardo emocional que ele insiste em carregar. Tentou livrar-se dele após o heroísmo contra o Chile, mas o desabafo acabou se revelando precipitado.
 

Victor - DIFICILMENTE

Disse, antes da Copa, que a geração atual de goleiros brasileiros é a melhor de toda a história. A geração anterior a esta contou com Marcos, Dida e Ceni. Não deve ir à Rússia.
 

Jefferson - POSSIVELMENTE

Embora seja um bom goleiro, nunca foi aposta unânime para a baliza brasileira. Sua continuidade na seleção dependerá das predileções do novo técnico e dos rumos profissionais. Chances moderadas.

 
Maicon - NÃO

Estará com 36 anos no próximo Mundial. Para um lateral cujas virtudes dependem do vigor físico, 2018 parece ser um horizonte inalcançável. Além disso, há também o desgaste de dois fracassos em Copas.

 
Daniel Alves - NÃO

Barrado no transcurso da competição e em queda técnica, é outro veterano que não será aproveitado no próximo Mundial.
 

Marcelo - DIFICILMENTE

Reserva no Real Madrid, o habilidoso Marcelo fez uma Copa com a cara de sua trajetória: um tanto irregular. Apesar da juventude (contará apenas 30 anos em 2018), é nome quase descartado num ambiente que anseia por renovação.
 

Maxwell – NÃO

A crise na lateral esquerda é mundial, tanto que o limitadíssimo Höwedes ocupa a posição na forte equipe alemã. A presença de Maxwell na Copa também exemplifica a carência. Talvez nunca mais volte a ser convocado.
 

Thiago Silva - POSSIVELMENTE

O fato de não ter participado da tragédia no Mineirão reforça sua natural candidatura a 2018. Por outro lado, o capitão foi, em determinado momento do certame, o símbolo da fragilidade emocional do grupo. O choro pode respingar em seu futuro na seleção.
 

David Luiz - POSSIVELMENTE

Imediatamente após a hecatombe, declarou que ainda almeja ganhar uma Copa. Terá 31 anos em 2018. Destacou-se em algumas partidas do Mundial, mas a imagem tão profundamente vinculada a esta sofrida campanha em casa pode minar seu caminho.
 

Dante - NÃO

O vídeo dos gols da fatídica semifinal, que será reproduzido à exaustão por muito tempo, mostra Dante desnorteado, correndo a esmo. As cenas, ao contrário de o condenarem, absolvem-no de não ter tentado reagir. O beque do Bayern não teve culpa alguma, mas não é mais um garoto e deve deixar a seleção.
 

Henrique - NÃO

Homem de confiança de um técnico que não deve permanecer no cargo. Foi um dos poucos nomes questionados numa convocação estranhamente “consensual”. Quase nenhuma chance de ir à Rússia.

 
Paulinho - POSSIVELMENTE

Um dos mais complicados prognósticos. Claudicante em sua temporada de estreia na Europa e em sua primeira Copa, o ídolo corintiano tem potencial e idade para chegar com fôlego a 2018. Saiu do Mineirão com ferimentos leves, pois não atuou no cataclísmico primeiro tempo.
 

Luiz Gustavo - DIFICILMENTE

Pertence a uma linhagem de volantes que, depois do fiasco histórico, deve perder espaço para meias capazes de marcar e organizar o jogo, como os algozes Schweinsteiger, Khedira, Kroos e Özil. Ainda assim, performances bastante dignas em alguns jogos desta Copa podem assegurar-lhe mais jogos pela seleção.
 

Ramires - POSSIVELMENTE

Não foi titular com Felipão, e isso pode se tornar uma vantagem na concorrência a uma das vagas para 2018. Terá 31 anos e, se ainda estiver rendendo bem num grande clube europeu, poderá ser, na Rússia, um dos poucos brasileiros com dois Mundiais na bagagem. 
 

Hernanes - POSSIVELMENTE

Situação similar à de Ramires. Transferiu-se recentemente para a Inter de Milão, continua evoluindo na carreira. É um dos poucos meio-campistas brasileiros que reúnem faculdades equiparáveis às dos alemães. Estará com 33 anos na próxima Copa.
 

Fernandinho - NÃO

Os erros individuais do meia do Manchester City contra a Alemanha não explicam a goleada, nem anulam suas boas exibições diante de Camarões e Colômbia. Mas, como foi sacado depois da pior primeira etapa da história da seleção, tende a ficar uns tempos distante dela.
 

Hulk - NÃO

Demonstrou muito arrojo e pouca eficácia nesta Copa. Só irá à Rússia se alguém elaborar a teoria de que ter jogado num clube do gélido país pode facilitar o desempenho no Mundial a ser realizado lá.

 
Oscar - PROVAVELMENTE

Excetuando-se o jogo contra a Croácia, não brilhou no Brasil, porém mostrou um nível de comprometimento que costuma agradar aos técnicos. É bastante jovem, fez dois gols neste Mundial e exibiu capacidade para disputar outros.
 

Willian - NÃO

Ele não sabe muito bem quem é Amarildo. Infelizmente, o desconhecimento da História do futebol é comum entre jogadores brasileiros. Talvez por isso William não tenha feito história nesta Copa. Palpite, valendo um guaraná: não joga em 2018.
 

Neymar - SIM

Único personagem de 2014 que pode aguardar, sem receio, as cenas do próximo capítulo. Nome garantido para toda a longa jornada até o Mundial da Rússia.

 
Bernard - DIFICILMENTE

Bom atacante que cumpriu um ótimo biênio 2012/13 pelo Galo, precisa se afirmar no futebol europeu e superar a traumática derrota no familiar Mineirão. Caso contrário, não aparecerá no álbum em 2018.
 

Jô - NÃO

Uma das escolhas equivocadas da convocação de Scolari. Estará certamente fora da órbita do treinador incumbido de comandar a seleção nos anos vindouros.

 
Fred - NÃO

Numa entrevista concedida ao jornal O Globo, no fim de maio, Fred esbanjava otimismo. Nada, entretanto, saiu conforme o esperado. É provável que não volte a ser chamado.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Três pequenos comentários sobre o vexame

1- Felipão está na entrevista coletiva. O treinador afirma que a Alemanha passou, nas últimas duas Copas, por experiências equivalentes à que o Brasil vivencia agora. Quer dar a entender que a derrota pode ser o primeiro passo para uma eventual redenção daqui a quatro anos. A analogia me parece imperfeita. Em 2010, a Alemanha bateu Inglaterra e Argentina nas oitavas e nas quartas, respectivamente, com goleadas estupendas. Já o Brasil superou, nas mesmas fases de 2014, Chile e Colômbia, mas jogando mal, fazendo parcos gols com a ajuda da bola parada. Os fracassos recentes da Alemanha foram muito diferentes.

2- Se, em 1994, havia imensa ansiedade por título, já que o Brasil não ganhava uma Copa desde 1970, a ansiedade agora é outra. O jejum de taças não é tão grande, mas a ausência de bom futebol em Copas é longa e estarrecedora. O futebol brasileiro anseia pela antiga magia a que Schweinsteiger fizera menção dois dias antes da partida. Em 90, 94, 98, 2002, 2006, 2010 e 2014, não houve plateias embevecidas com o escrete canarinho. Houve, sim, muita gente obcecada por engordar o seu currículo, enfeitar seu portfólio, condecorar seu mandato, fosse como fosse. Enquanto a prioridade não voltar a ser praticar o jogo de forma virtuosa, não haverá futuro.


3- Na Copa Sul-Americana de 2011, a Universidad de Chile esmagou o Flamengo, no Engenhão, por 4 a 0. Atuação histórica, pondo o rubro-negro na roda. Sampaoli dirigia a equipe chilena. Luxemburgo era o técnico do Flamengo. Meses depois, o Barcelona massacrou o Santos na decisão do Mundial de Clubes. Guardiola nocauteou Muricy. Faltava apenas um dentre os três mais prestigiados técnicos do Brasil nas últimas décadas levar uma sova histórica de algum adversário estrangeiro. Não falta mais. O time de Löw destruiu implacavelmente o de Felipão. 

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Caindo pela tabela

Brasil pode perder, em casa, honrosa condição que conquistou há 64 anos, também em casa: a de país com maior número de gols, somadas todas as Copas

            Desde 2006, fazer 4 gols tem sido algo habitual para a Alemanha em partidas de Copa. Costa Rica, Austrália, Inglaterra, Argentina e Portugal foram vítimas desse apreciável hobby. Mas, se repetir a suculenta dose contra Gana, no próximo sábado, a Nationalelf não estará apenas mantendo sua rotina e testificando seu poderio – estará, também, tomando para si um nobre posto que pertence ao Brasil há 64 anos. Desde 28 junho de 1950, mais precisamente. Nessa data, a seleção chegou, no empate por 2 a 2 contra a Suíça, no Pacaembu, a seu 26º gol em Mundiais. Foi o segundo gol do Brasil, anotado por Baltazar, o “Cabecinha de Ouro”, que o pôs à frente da Itália, em cujo cartel figuravam 25 tentos até então.

            Na verdade, os brasileiros já haviam conseguido superar os italianos nos 4 a 0 da abertura da Copa de 1950, diante do México, mas não de forma definitiva, já que, com os dois gols da derrota para a Suécia (3x2), no dia seguinte, a Azzurra recuperou a liderança. Depois do citado gol de Baltazar, na segunda rodada, não haveria mais volta. A seleção estufaria as redes outras 16 vezes no torneio, atingiria o total de 42 gols em Mundiais (5 em 1930, 1 em 1934, 14 em 1938 e 22 em 1950) e não seria mais ultrapassada.

            Isso pode mudar no sábado. Com a goleada que impingiu aos lusitanos, a Alemanha passou a ter 210 gols em Copas, 3 a menos que o Brasil. A aproximação germânica não é inédita: ao fim da Copa de 1990, o somatório geral mostrava os mesmos 3 gols de diferença (148x145). Nas três edições seguintes, porém, os ótimos resultados dos escretes de Parreira, Zagallo e Felipão fariam a distância entre as potências aumentar. Ronaldo marcou, em cima de Oliver Kahn, na decisão de 2002, o 190º e o 191º gols tupiniquins. Os rivais, a essa altura, tinham 176.

            De lá para cá, a Alemanha contou com o ataque mais positivo de duas Copas consecutivas −14 gols em 2006, 16 em 2010 − e estreou em 2014 de forma nada econômica. Embora a quantidade de gols a separar os dois gigantes já tenha sido, em outras ocasiões, diminuta (além da já mencionada situação pós-1990, vale aludir ao placar de 110 a 106, registrado após Alemanha 6x0 México, pelo Mundial de 1978), a ameaça à 1ª posição na artilharia parece mais séria agora. Há tempos, a seleção alemã tem se revelado mais organizada do que a brasileira no que diz respeito às ações ofensivas. A duradoura presença de Joachim Löw na comissão técnica tem relação estreita com o apuro tático de uma equipe que não para de se renovar, dado o contínuo surgimento de ótimos valores. Klose (36 anos), Podolski (29), Müller (24) e Götze (22) selam um feliz casamento de gerações no ataque alemão, que ainda poderia dispor do preterido Mario Gómez e do contundido Reus.

            Afobada, dependente de clarões individuais e pouco inventiva, a dona da casa na Copa de 2014 não parece pronta para fazer mais gols do que a Alemanha e, de quebra, manter o país na condição de “topscorer” dos Mundiais. Somente com uma rápida evolução – aliada a uma provável goleada sobre a fragílima equipe de Camarões −, a projeção pode se alterar.

            É claro que, no jogo de forças do Mundial de 2014, estatísticas que levam em conta dados de quase um século de história não provocam interferência alguma no plano da prática. Em contrapartida, a perda da 1ª colocação no ranking de gols feitos tem grande relevância no plano simbólico. A tradicional vocação brasileira para o ataque criativo, para um futebol de dinâmica vistosa e de muitos gols, vem sendo paulatinamente minada pelo discurso da vitória a qualquer preço. Para os arautos dessa visão tacanha, só o título fica para a história, não importam os caminhos. O problema é que, quando o título não vem, não sobra nada. A Alemanha experimenta o reverso dessa situação. Fracassou nos Mundiais de 2006 e 2010, mas depositou valores vultosos numa gorda conta futebolística. O investimento a longo prazo lhe renderá, em 2014, a taça? Não se sabe. Mas pode lhe proporcionar uma honraria mais modesta neste sábado. Basta seguir o recente costume de fazer 4 gols.


A contagem de gols, Copa a Copa

            Antes de a Copa de 2014 começar, os 11 países mais bem posicionados quanto ao número de gols feitos eram, nessa ordem: Brasil (210 gols), Alemanha (206), Itália (126), Argentina (123), França (96), Espanha (88), Hungria (87), Inglaterra (77), Uruguai (76), Suécia (74) e Holanda (71). Abaixo, confira como cada um chegou a tais marcas. Ao lado de cada seleção, está a quantidade de gols no Mundial delimitado. Entre parênteses, o total de gols em Copas até aquele momento da história. A sigla NP significa “não participou”.

1930 – O Uruguai foi anfitrião e campeão, mas a Argentina, que jogou uma partida a mais, teve o ataque mais positivo e o artilheiro do certame (Guillermo Stábile, 8 gols).

Brasil 5 (5)
Alemanha NP (0)
Itália NP (0)
Argentina 18 (18)
França (4)
Espanha NP (0)
Hungria NP (0)
Inglaterra NP (0)
Uruguai 15 (15)
Suécia NP (0)
Holanda NP (0)

1934 – Depois desse Mundial, a Holanda só voltaria a balançar a rede em 1974. Isso explica sua colocação apenas mediana na tábua, apesar dos três vice-campeonatos.

Brasil 1 (6)
Alemanha 11 (11)
Itália 12 (12)
Argentina 2 (20)
França 2 (6)
Espanha 4 (4)
Hungria 5 (5)
Inglaterra NP (0)
Uruguai NP (0)
Suécia 4 (4)
Holanda 2 (2)

1938 – A bicampeã Itália assume a ponta. Brasil e Hungria, com a ajuda de Sárosi (5 gols na Copa) e Leônidas (artilheiro do Mundial com 7 gols), alcançam a Argentina.

Brasil 14 (20)
Alemanha 3 (14)
Itália 11 (23)
Argentina NP (20)
França 4 (10)
Espanha NP (4)
Hungria 15 (20)
Inglaterra NP (0)
Uruguai NP (0)
Suécia 11 (15)
Holanda 0 (2)

1950 – Embora não contasse com o trio Gre-no-li (Gren, Gunnar Nordahl e Liedholm), campeão olímpico em 1948, a Suécia obteve a 3ª colocação na Copa e a 4ª na soma de gols de todos os Mundiais.

Brasil 22 (42)
Alemanha NP (14)
Itália 4 (27)
Argentina NP (20)
França NP (10)
Espanha 10 (14)
Hungria NP (20)
Inglaterra 2 (2)
Uruguai 15 (30)
Suécia 11 (26)
Holanda NP (2)

1954 – O melhor ataque de uma edição de Copa pertence à fantástica Hungria de Puskás, Kocsis e Czibor. Também houve profusão de gols por parte da Alemanha, que venceu os magiares na final.

Brasil 8 (50)
Alemanha 25 (39)
Itália 6 (33)
Argentina NP (20)
França 3 (13)
Espanha NP (14)
Hungria 27 (47)
Inglaterra 8 (10)
Uruguai 16 (46)
Suécia NP (26)
Holanda NP (2)

1958 – Depois de duas ausências seguidas, a bicampeã Itália cai para a 7ª posição. Como jamais voltaria a ficar de fora de um Mundial, hoje ocupa o 3º lugar.

Brasil 16 (66)
Alemanha 12 (51)
Itália NP (33)
Argentina 5 (25)
França 23 (36)
Espanha NP (14)
Hungria 7 (54)
Inglaterra 4 (14)
Uruguai NP (46)
Suécia 12 (38)
Holanda NP (2)

1962 – Momento mais confortável para a liderança do Brasil, que, com os 30 gols entre 1958 e 1962, ficou com 18 a mais do que a Hungria.

Brasil 14 (80)
Alemanha 4 (55)
Itália 3 (36)
Argentina 2 (27)
França NP (36)
Espanha 2 (16)
Hungria 8 (62)
Inglaterra 5 (19)
Uruguai 4 (50)
Suécia NP (38)
Holanda NP (2)

1966 – Não, não nos esquecemos de Portugal, cujo desempenho ofensivo foi o melhor da Copa (17 gols). Não entra na lista abaixo porque não está entre os “onze mais” da história.

Brasil 4 (84)
Alemanha 15 (70)
Itália 2 (38)
Argentina 4 (31)
França 2 (38)
Espanha 4 (20)
Hungria 8 (70)
Inglaterra 11 (30)
Uruguai 2 (52)
Suécia NP (38)
Holanda NP (2)

1970 – Numa das melhores Copas de todos os tempos, Brasil e Alemanha começam a se distanciar da concorrência. Jairzinho e Gerd Müller colaboraram bastante para isso.

Brasil 19 (103)
Alemanha 17 (87)
Itália 10 (48)
Argentina NP (31)
França NP (38)
Espanha NP (20)
Hungria NP (70)
Inglaterra 4 (34)
Uruguai 4 (56)
Suécia 2 (40)
Holanda NP (2)

1974 – Nesta edição, a Polônia ressurgiu em grande estilo: fez 16 de seus 44 gols na história das Copas. França e Inglaterra, ambas fora da disputa, foram ultrapassadas pela Argentina.

Brasil 6 (109)
Alemanha 13 (100)
Itália 5 (53)
Argentina 9 (40)
França NP (38)
Espanha NP (20)
Hungria NP (70)
Inglaterra NP (34)
Uruguai 1 (57)
Suécia 7 (47)
Holanda 15 (17)

1978 – A Espanha, com sua exígua quantidade de gols até aqui, está atrás de Tchecoslováquia, Suíça, Iugoslávia, Áustria, Chile, etc. Depois, quadruplicaria o acervo.

Brasil 10 (119)
Alemanha 10 (110)
Itália 9 (62)
Argentina 15 (55)
França 5 (43)
Espanha 2 (22)
Hungria 3 (73)
Inglaterra NP (34)
Uruguai NP (57)
Suécia 1 (48)
Holanda 15 (32)

1982 – A maior goleada das Copas (10 a 1 sobre El Salvador) manteve a Hungria entre os grandes. Mesmo distante dos Mundiais desde 1986, sustenta a 7ª posição até hoje.

Brasil 15 (134)
Alemanha 12 (122)
Itália 12 (74)
Argentina 8 (63)
França 16 (59)
Espanha 4 (26)
Hungria 12 (85)
Inglaterra 6 (40)
Uruguai NP (57)
Suécia NP (48)
Holanda NP (32)

1986 – Entre 1978 e 1986, a geração de Michel Platini marcou 33 gols e consolidou a dianteira da França em relação a Uruguai e Suécia.

Brasil 10 (144)
Alemanha 8 (130)
Itália 5 (79)
Argentina 14 (77)
França 12 (71)
Espanha 11 (37)
Hungria 2 (87)
Inglaterra 7 (47)
Uruguai 2 (59)
Suécia NP (48)
Holanda NP (32)

1990 – Repare como a vice-campeã Argentina chegou à decisão tendo feito apenas 5 gols na competição. A Holanda, mesmo com Van Basten e Gullit, não passou de míseros 3 gols.

Brasil 4 (148)
Alemanha 15 (145)
Itália 10 (89)
Argentina 5 (82)
França NP (71)
Espanha 6 (43)
Hungria NP (87)
Inglaterra 8 (55)
Uruguai 2 (61)
Suécia 3 (51)
Holanda 3 (35)

1994 – Romênia e Bulgária marcaram 10 gols cada. Mas o melhor ataque da Copa foi o da Suécia, que ficou momentaneamente à frente de Uruguai e Inglaterra no placar geral.

Brasil 11 (159)
Alemanha 9 (154)
Itália 8 (97)
Argentina 8 (90)
França NP (71)
Espanha 10 (53)
Hungria NP (87)
Inglaterra NP (55)
Uruguai NP (61)
Suécia 15 (66)
Holanda 8 (43)

1998 – Neste Mundial, Itália e Argentina atingem a marca dos 100 gols e se firmam como postulantes à 3ª colocação. A briga continua apertada no cenário atual.

Brasil 14 (173)
Alemanha 8 (162)
Itália 8 (105)
Argentina 10 (100)
França 15 (86)
Espanha 8 (61)
Hungria NP (87)
Inglaterra 7 (62)
Uruguai NP (61)
Suécia NP (66)
Holanda 13 (56)

2002 – Embora não tenha encantado o planeta, o Brasil deu uma disparada. A decepcionante França não conseguiu fazer gol, adiando a ultrapassagem sobre a Hungria para a edição seguinte.

Brasil 18 (191)
Alemanha 14 (176)
Itália 5 (110)
Argentina 2 (102)
França 0 (86)
Espanha 10 (71)
Hungria NP (87)
Inglaterra 6 (68)
Uruguai 4 (65)
Suécia 5 (71)
Holanda NP (43)

2006 – Nas oitavas-de-final, contra Gana, a seleção do Brasil se tornou a primeira a alcançar 200 gols. No mesmo embate, Ronaldo assumiu a artilharia isolada dos Mundiais.

Brasil 10 (201)
Alemanha 14 (190)
Itália 12 (122)
Argentina 11 (113)
França 9 (95)
Espanha 9 (80)
Hungria NP (87)
Inglaterra 6 (74)
Uruguai NP (65)
Suécia 3 (74)
Holanda 3 (59)

2010 – O total de gols da Alemanha desconsidera a Alemanha Oriental, que participou da Copa de 1974. Portanto, entre os 206 gols da Alemanha estão os da Alemanha Ocidental (até 1990)  e os da Alemanha reunificada (de 1994 aos dias atuais).

Brasil 9 (210)
Alemanha 16 (206)
Itália 4 (126)
Argentina 10 (123)
França 1 (96)
Espanha 8 (88)
Hungria NP (87)
Inglaterra 3 (77)
Uruguai 11 (76)
Suécia NP (74)
Holanda 12 (71)

domingo, 15 de junho de 2014

Sem Puyol

Tal como o Barcelona, seleção espanhola sofre com a ausência de seu líder

            Na metade do primeiro tempo de Espanha x Holanda, a impressão que se tinha era a de que os campeões da Europa e do mundo massacrariam os comandados de Van Gaal. O velho toque de bola envolvente, que envenena o adversário, estava em Salvador. O controle, o domínio, a clarividência, a sincronia: tudo que consolidou o inebriante estilo da Fúria apareceu naqueles trinta e tantos minutos. Os trinta e tantos anos de Xavi não o impediram de abrir caminhos na defesa oponente. Iniesta, o esteta (talvez “Iniesteta” soe melhor), deixava jorrar sua arte na Fonte Nova. Trabalhando em consonância, jogando um futebol gregário e operário, trocando bolas com a precisão do handebol, os jogadores espanhóis pareciam estar prontos para uma nova aula sobre o conceito de futebol.

            O gol que David Silva perdeu poderia ter estendido a (gostosa) sensação de “déjà vu”, ou mesmo decretado irreversivelmente o triunfo de sua equipe. A derrocada do “tiki-taka” se tornaria, então, uma mentira, e os fracassos recentes – tanto da seleção quanto do Barça, sua versão clubística − seriam relativizados. Mas aí vieram o lançamento cinematográfico de Daley Blind, um mergulho de dublê hollywoodiano executado por Van Persie e a igualdade no placar. Na segunda etapa, falhas sucessivas e clamorosas, muito bem exploradas pela Holanda, aniquilaram a Espanha. Fizeram-na passar por situação vexatória, muito similar à que o Barcelona havia vivenciado na semifinal da Champions League 2012-13, contra o Bayern.

            Agora, a crise de identidade, que já vinha dilacerando pelas beiradas as certezas dos últimos seis anos, está definitivamente instaurada. Fala-se em abandonar o modelo de jogo outrora vitorioso e, para muitos, cativante. Vários analistas apontam, com razão, o envelhecimento da espinha dorsal como uma das causas da queda de rendimento − a contusão do virtuoso Thiago Alcântara, claro, acentuou esse problema. No entanto, a fluidez do jogo espanhol na primeira parte do embate contra os holandeses dava indícios de que o sonho ainda não tinha acabado. Mesmo limitada pela convocação bastante conservadora de Del Bosque, a Espanha mostrou, por mais de meia hora, que ainda podia dar caldo.

            Tanto podia que acabou por entorná-lo. Talvez a equipe tivesse conduzido melhor as coisas se sua retaguarda ainda estivesse sob a batuta de Carles Puyol. O zagueiro se aposentou em maio, devido às lesões que o perseguiram nos últimos dois anos. Os longos períodos de afastamento coincidiram com a decadência do Barcelona e da Fúria, embora esta ainda tenha conseguido vencer a última Eurocopa sem ele. Mas a grotesca atuação frente à Argentina em 2010 – 4x1 para os sul-americanos, dois meses após o êxito na África do Sul −, que não contou com os serviços do beque catalão, já mostrava que o respeitado exército espanhol sentia o baque da ausência de seu general.

            Aliás, nesse amistoso, Reina cometeu, com os pés, erro muito semelhante ao de Casillas na partida de anteontem. Sem Puyol, a defesa da Roja soma a indecisão de Ramos aos apagões de Piqué, o que acaba multiplicando a insegurança do capitão Iker. O produto disso também pôde ser observado na final da Copa das Confederações. E, no Barcelona, a equação é a mesma. Basta dizer que Puyol não esteve presente nas duas acachapantes derrotas (0x4 e 0x3) diante do Bayern em 2013, símbolos do aparente fim de ciclo.

            Portanto, quando se diz que “o time da Espanha é praticamente o mesmo que ganhou a última Copa do Mundo”, a frase camufla o desfalque crucial. Obviamente, há outras razões – a estratégia manjada, o outono da carreira de alguns craques – para a fase tempestuosa pela qual passa a seleção espanhola. Porém, é inegável que a sóbria liderança de Carles Puyol, reconhecida e admirada pelos companheiros, faz falta. Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, Barça e Fúria sentiam-se mais protegidos.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

"Kloser": perto demais... do recorde!

Miroslav Klose não jogou a decisão do 3º lugar em 2010. Não podia ou não quis?

             
            Um dos jogos mais descontraídos em Copas do Mundo é o da disputa pela terceira colocação. Já não há mais a sanha de apalpar a taça, nem o perigo de passar um grande vexame. As pernas ficam menos tesas e as mentes, mais frescas. Não é mero fruto do acaso, portanto, a média exata de 4 gols em partidas desse tipo na história dos Mundiais. Artilheiros de algumas edições aproveitaram bem a ocasião, isolando-se no honroso posto ou ampliando a marca. Incluem-se no rol Leônidas da Silva (em 1938, fez 2 de seus 7 gols na decisão do 3º lugar), Fontaine (4 dos 13 em 1958) Eusébio (1 de seus 9 tentos em 66), Lato (1 dos 7 em 74), Schilacci (1 dos 6 em 1990), Suker (1 dos 6 em 1998), Thomas Müller e Forlán (ambos marcaram em 2010).

            Miroslav Klose podia estar nessa lista. Autor de 4 gols na África do Sul, ele desfalcou a Alemanha no duelo com os uruguaios, que, seguindo a regra, teve muitos gols – 3 a 2 para os germânicos. Tivesse entrado em campo, Klose poderia ter alcançado não apenas a artilharia daquela Copa, mas também a posição mais alta do ranking de goleadores de todos os Mundiais. Um gol contra o Uruguai o teria posto ao lado de Ronaldo. Dois o teriam deixado sozinho no topo, com 16. Mas o camisa 11 da Alemanha ficou no banco.

            Segundo consta, a razão da ausência foi uma gripe. Ou dor nas costas, oriunda, disseram os jornais, da batalha contra a Espanha. Buscas no google mostram as duas possibilidades, e nenhuma delas soa convincente o bastante. Afinal, como um centroavante de 32 anos ─ em sua última Copa, presumivelmente −, próximo de um recorde tão cobiçado, pertencente por décadas ao estupendo compatriota Gerd Müller, pode deixar uma gripe estragar tudo? E, se não houve tosse nem coriza (as informações são, como já se disse, imprecisas), por que a dor lombar não o tirara sequer por um minuto do jogo frente aos espanhóis?

            A hipótese que se pretende aventar aqui é a seguinte: Miroslav Klose não desfalcou a Alemanha em seu último compromisso na Copa de 2010 por motivos médicos, mas sim por vontade própria. Teria sido conveniente enfrentar o Uruguai e aproveitar o relaxamento inerente à ocasião para empatar com Ronaldo, talvez superá-lo. “Miro”, no entanto, preferiu – pura especulação – encarar o desafio de se manter competitivo até 2014.

            Caso tenha existido esse ousado plano, vê-se que acabou dando certo. No Brasil, Klose disporá de alguns jogos para bater o Fenômeno. Terá, ainda, a chance de atingir outras marcas importantes, como a de jogador com mais partidas de Copas no currículo: Lothar Matthäus tem 25, Klose pode chegar a 26. Com qualquer mísero gol, terá balançado o fundo do barbante em 4 Copas (2002, 2006, 2010 e 2014), igualando-se, assim, a Pelé e Uwe Seeler, mitos que carimbaram as metas adversárias em 1958, 1962, 1966 e 1970.

            Embora não passe de conjectura, a “autobarração” de Klose revela certa sintonia com suas atitudes ao longo da carreira. Não se trata, portanto, de uma ideia totalmente desprovida de fundamento. À distância, Klose parece ser um cara que não aprecia a vantagem fácil, a glória sem luta. Em 2005, chegou a pedir ao árbitro de Werder Bremen (time que defendia à época) x Arminia Bielefeld que voltasse atrás na marcação de um pênalti a seu favor, dizendo-lhe que o goleiro procurara apenas a bola. Sete anos depois, vestindo as cores da Lazio num jogo contra o Napoli, outro gesto raríssimo nas canchas: depois de um escanteio que resultou em gol, Klose correu em direção ao juiz para lhe confessar o toque de mão. Os atletas napolitanos agradeceram, quase comovidos. O futebol, também.

A conduta do atacante nesses dois episódios encontra ressonância nos versos de “Dieser Weg”, sua canção predileta (“Este caminho não será fácil / Este caminho será tortuoso e difícil / Você não vai estar de acordo com muitos / Mas esta vida oferece muito mais”), e reforça a teoria de que ele renunciou à bandeja com faca e queijo de 2010. Um jogador que conhece tão bem o sentido da relação entre mérito e recompensa pode, sim, sem nenhum autoflagelo, ter exigido de si mesmo um esforço extra, o cumprimento de um pacto secreto. “Você é um jogador mediano, Miroslav”, teria dito ele a si próprio. “Para ultrapassar gênios como ‘Der Bomber’ e o Fenômeno, você precisa merecer mais”.

É claro que isso tudo pode ser uma grande fantasia. Vai ver que a gripe era das brabas, mesmo. Ou que a dor nas costas estava realmente incomodando. Quem sabe as duas coisas juntas. Mas eu prefiro acreditar que Klose não quis fechar a conta em 2010. E que esta vida lhe oferece muito mais para 2014. Boa Copa, Miro!