sexta-feira, 20 de junho de 2014

Caindo pela tabela

Brasil pode perder, em casa, honrosa condição que conquistou há 64 anos, também em casa: a de país com maior número de gols, somadas todas as Copas

            Desde 2006, fazer 4 gols tem sido algo habitual para a Alemanha em partidas de Copa. Costa Rica, Austrália, Inglaterra, Argentina e Portugal foram vítimas desse apreciável hobby. Mas, se repetir a suculenta dose contra Gana, no próximo sábado, a Nationalelf não estará apenas mantendo sua rotina e testificando seu poderio – estará, também, tomando para si um nobre posto que pertence ao Brasil há 64 anos. Desde 28 junho de 1950, mais precisamente. Nessa data, a seleção chegou, no empate por 2 a 2 contra a Suíça, no Pacaembu, a seu 26º gol em Mundiais. Foi o segundo gol do Brasil, anotado por Baltazar, o “Cabecinha de Ouro”, que o pôs à frente da Itália, em cujo cartel figuravam 25 tentos até então.

            Na verdade, os brasileiros já haviam conseguido superar os italianos nos 4 a 0 da abertura da Copa de 1950, diante do México, mas não de forma definitiva, já que, com os dois gols da derrota para a Suécia (3x2), no dia seguinte, a Azzurra recuperou a liderança. Depois do citado gol de Baltazar, na segunda rodada, não haveria mais volta. A seleção estufaria as redes outras 16 vezes no torneio, atingiria o total de 42 gols em Mundiais (5 em 1930, 1 em 1934, 14 em 1938 e 22 em 1950) e não seria mais ultrapassada.

            Isso pode mudar no sábado. Com a goleada que impingiu aos lusitanos, a Alemanha passou a ter 210 gols em Copas, 3 a menos que o Brasil. A aproximação germânica não é inédita: ao fim da Copa de 1990, o somatório geral mostrava os mesmos 3 gols de diferença (148x145). Nas três edições seguintes, porém, os ótimos resultados dos escretes de Parreira, Zagallo e Felipão fariam a distância entre as potências aumentar. Ronaldo marcou, em cima de Oliver Kahn, na decisão de 2002, o 190º e o 191º gols tupiniquins. Os rivais, a essa altura, tinham 176.

            De lá para cá, a Alemanha contou com o ataque mais positivo de duas Copas consecutivas −14 gols em 2006, 16 em 2010 − e estreou em 2014 de forma nada econômica. Embora a quantidade de gols a separar os dois gigantes já tenha sido, em outras ocasiões, diminuta (além da já mencionada situação pós-1990, vale aludir ao placar de 110 a 106, registrado após Alemanha 6x0 México, pelo Mundial de 1978), a ameaça à 1ª posição na artilharia parece mais séria agora. Há tempos, a seleção alemã tem se revelado mais organizada do que a brasileira no que diz respeito às ações ofensivas. A duradoura presença de Joachim Löw na comissão técnica tem relação estreita com o apuro tático de uma equipe que não para de se renovar, dado o contínuo surgimento de ótimos valores. Klose (36 anos), Podolski (29), Müller (24) e Götze (22) selam um feliz casamento de gerações no ataque alemão, que ainda poderia dispor do preterido Mario Gómez e do contundido Reus.

            Afobada, dependente de clarões individuais e pouco inventiva, a dona da casa na Copa de 2014 não parece pronta para fazer mais gols do que a Alemanha e, de quebra, manter o país na condição de “topscorer” dos Mundiais. Somente com uma rápida evolução – aliada a uma provável goleada sobre a fragílima equipe de Camarões −, a projeção pode se alterar.

            É claro que, no jogo de forças do Mundial de 2014, estatísticas que levam em conta dados de quase um século de história não provocam interferência alguma no plano da prática. Em contrapartida, a perda da 1ª colocação no ranking de gols feitos tem grande relevância no plano simbólico. A tradicional vocação brasileira para o ataque criativo, para um futebol de dinâmica vistosa e de muitos gols, vem sendo paulatinamente minada pelo discurso da vitória a qualquer preço. Para os arautos dessa visão tacanha, só o título fica para a história, não importam os caminhos. O problema é que, quando o título não vem, não sobra nada. A Alemanha experimenta o reverso dessa situação. Fracassou nos Mundiais de 2006 e 2010, mas depositou valores vultosos numa gorda conta futebolística. O investimento a longo prazo lhe renderá, em 2014, a taça? Não se sabe. Mas pode lhe proporcionar uma honraria mais modesta neste sábado. Basta seguir o recente costume de fazer 4 gols.


A contagem de gols, Copa a Copa

            Antes de a Copa de 2014 começar, os 11 países mais bem posicionados quanto ao número de gols feitos eram, nessa ordem: Brasil (210 gols), Alemanha (206), Itália (126), Argentina (123), França (96), Espanha (88), Hungria (87), Inglaterra (77), Uruguai (76), Suécia (74) e Holanda (71). Abaixo, confira como cada um chegou a tais marcas. Ao lado de cada seleção, está a quantidade de gols no Mundial delimitado. Entre parênteses, o total de gols em Copas até aquele momento da história. A sigla NP significa “não participou”.

1930 – O Uruguai foi anfitrião e campeão, mas a Argentina, que jogou uma partida a mais, teve o ataque mais positivo e o artilheiro do certame (Guillermo Stábile, 8 gols).

Brasil 5 (5)
Alemanha NP (0)
Itália NP (0)
Argentina 18 (18)
França (4)
Espanha NP (0)
Hungria NP (0)
Inglaterra NP (0)
Uruguai 15 (15)
Suécia NP (0)
Holanda NP (0)

1934 – Depois desse Mundial, a Holanda só voltaria a balançar a rede em 1974. Isso explica sua colocação apenas mediana na tábua, apesar dos três vice-campeonatos.

Brasil 1 (6)
Alemanha 11 (11)
Itália 12 (12)
Argentina 2 (20)
França 2 (6)
Espanha 4 (4)
Hungria 5 (5)
Inglaterra NP (0)
Uruguai NP (0)
Suécia 4 (4)
Holanda 2 (2)

1938 – A bicampeã Itália assume a ponta. Brasil e Hungria, com a ajuda de Sárosi (5 gols na Copa) e Leônidas (artilheiro do Mundial com 7 gols), alcançam a Argentina.

Brasil 14 (20)
Alemanha 3 (14)
Itália 11 (23)
Argentina NP (20)
França 4 (10)
Espanha NP (4)
Hungria 15 (20)
Inglaterra NP (0)
Uruguai NP (0)
Suécia 11 (15)
Holanda 0 (2)

1950 – Embora não contasse com o trio Gre-no-li (Gren, Gunnar Nordahl e Liedholm), campeão olímpico em 1948, a Suécia obteve a 3ª colocação na Copa e a 4ª na soma de gols de todos os Mundiais.

Brasil 22 (42)
Alemanha NP (14)
Itália 4 (27)
Argentina NP (20)
França NP (10)
Espanha 10 (14)
Hungria NP (20)
Inglaterra 2 (2)
Uruguai 15 (30)
Suécia 11 (26)
Holanda NP (2)

1954 – O melhor ataque de uma edição de Copa pertence à fantástica Hungria de Puskás, Kocsis e Czibor. Também houve profusão de gols por parte da Alemanha, que venceu os magiares na final.

Brasil 8 (50)
Alemanha 25 (39)
Itália 6 (33)
Argentina NP (20)
França 3 (13)
Espanha NP (14)
Hungria 27 (47)
Inglaterra 8 (10)
Uruguai 16 (46)
Suécia NP (26)
Holanda NP (2)

1958 – Depois de duas ausências seguidas, a bicampeã Itália cai para a 7ª posição. Como jamais voltaria a ficar de fora de um Mundial, hoje ocupa o 3º lugar.

Brasil 16 (66)
Alemanha 12 (51)
Itália NP (33)
Argentina 5 (25)
França 23 (36)
Espanha NP (14)
Hungria 7 (54)
Inglaterra 4 (14)
Uruguai NP (46)
Suécia 12 (38)
Holanda NP (2)

1962 – Momento mais confortável para a liderança do Brasil, que, com os 30 gols entre 1958 e 1962, ficou com 18 a mais do que a Hungria.

Brasil 14 (80)
Alemanha 4 (55)
Itália 3 (36)
Argentina 2 (27)
França NP (36)
Espanha 2 (16)
Hungria 8 (62)
Inglaterra 5 (19)
Uruguai 4 (50)
Suécia NP (38)
Holanda NP (2)

1966 – Não, não nos esquecemos de Portugal, cujo desempenho ofensivo foi o melhor da Copa (17 gols). Não entra na lista abaixo porque não está entre os “onze mais” da história.

Brasil 4 (84)
Alemanha 15 (70)
Itália 2 (38)
Argentina 4 (31)
França 2 (38)
Espanha 4 (20)
Hungria 8 (70)
Inglaterra 11 (30)
Uruguai 2 (52)
Suécia NP (38)
Holanda NP (2)

1970 – Numa das melhores Copas de todos os tempos, Brasil e Alemanha começam a se distanciar da concorrência. Jairzinho e Gerd Müller colaboraram bastante para isso.

Brasil 19 (103)
Alemanha 17 (87)
Itália 10 (48)
Argentina NP (31)
França NP (38)
Espanha NP (20)
Hungria NP (70)
Inglaterra 4 (34)
Uruguai 4 (56)
Suécia 2 (40)
Holanda NP (2)

1974 – Nesta edição, a Polônia ressurgiu em grande estilo: fez 16 de seus 44 gols na história das Copas. França e Inglaterra, ambas fora da disputa, foram ultrapassadas pela Argentina.

Brasil 6 (109)
Alemanha 13 (100)
Itália 5 (53)
Argentina 9 (40)
França NP (38)
Espanha NP (20)
Hungria NP (70)
Inglaterra NP (34)
Uruguai 1 (57)
Suécia 7 (47)
Holanda 15 (17)

1978 – A Espanha, com sua exígua quantidade de gols até aqui, está atrás de Tchecoslováquia, Suíça, Iugoslávia, Áustria, Chile, etc. Depois, quadruplicaria o acervo.

Brasil 10 (119)
Alemanha 10 (110)
Itália 9 (62)
Argentina 15 (55)
França 5 (43)
Espanha 2 (22)
Hungria 3 (73)
Inglaterra NP (34)
Uruguai NP (57)
Suécia 1 (48)
Holanda 15 (32)

1982 – A maior goleada das Copas (10 a 1 sobre El Salvador) manteve a Hungria entre os grandes. Mesmo distante dos Mundiais desde 1986, sustenta a 7ª posição até hoje.

Brasil 15 (134)
Alemanha 12 (122)
Itália 12 (74)
Argentina 8 (63)
França 16 (59)
Espanha 4 (26)
Hungria 12 (85)
Inglaterra 6 (40)
Uruguai NP (57)
Suécia NP (48)
Holanda NP (32)

1986 – Entre 1978 e 1986, a geração de Michel Platini marcou 33 gols e consolidou a dianteira da França em relação a Uruguai e Suécia.

Brasil 10 (144)
Alemanha 8 (130)
Itália 5 (79)
Argentina 14 (77)
França 12 (71)
Espanha 11 (37)
Hungria 2 (87)
Inglaterra 7 (47)
Uruguai 2 (59)
Suécia NP (48)
Holanda NP (32)

1990 – Repare como a vice-campeã Argentina chegou à decisão tendo feito apenas 5 gols na competição. A Holanda, mesmo com Van Basten e Gullit, não passou de míseros 3 gols.

Brasil 4 (148)
Alemanha 15 (145)
Itália 10 (89)
Argentina 5 (82)
França NP (71)
Espanha 6 (43)
Hungria NP (87)
Inglaterra 8 (55)
Uruguai 2 (61)
Suécia 3 (51)
Holanda 3 (35)

1994 – Romênia e Bulgária marcaram 10 gols cada. Mas o melhor ataque da Copa foi o da Suécia, que ficou momentaneamente à frente de Uruguai e Inglaterra no placar geral.

Brasil 11 (159)
Alemanha 9 (154)
Itália 8 (97)
Argentina 8 (90)
França NP (71)
Espanha 10 (53)
Hungria NP (87)
Inglaterra NP (55)
Uruguai NP (61)
Suécia 15 (66)
Holanda 8 (43)

1998 – Neste Mundial, Itália e Argentina atingem a marca dos 100 gols e se firmam como postulantes à 3ª colocação. A briga continua apertada no cenário atual.

Brasil 14 (173)
Alemanha 8 (162)
Itália 8 (105)
Argentina 10 (100)
França 15 (86)
Espanha 8 (61)
Hungria NP (87)
Inglaterra 7 (62)
Uruguai NP (61)
Suécia NP (66)
Holanda 13 (56)

2002 – Embora não tenha encantado o planeta, o Brasil deu uma disparada. A decepcionante França não conseguiu fazer gol, adiando a ultrapassagem sobre a Hungria para a edição seguinte.

Brasil 18 (191)
Alemanha 14 (176)
Itália 5 (110)
Argentina 2 (102)
França 0 (86)
Espanha 10 (71)
Hungria NP (87)
Inglaterra 6 (68)
Uruguai 4 (65)
Suécia 5 (71)
Holanda NP (43)

2006 – Nas oitavas-de-final, contra Gana, a seleção do Brasil se tornou a primeira a alcançar 200 gols. No mesmo embate, Ronaldo assumiu a artilharia isolada dos Mundiais.

Brasil 10 (201)
Alemanha 14 (190)
Itália 12 (122)
Argentina 11 (113)
França 9 (95)
Espanha 9 (80)
Hungria NP (87)
Inglaterra 6 (74)
Uruguai NP (65)
Suécia 3 (74)
Holanda 3 (59)

2010 – O total de gols da Alemanha desconsidera a Alemanha Oriental, que participou da Copa de 1974. Portanto, entre os 206 gols da Alemanha estão os da Alemanha Ocidental (até 1990)  e os da Alemanha reunificada (de 1994 aos dias atuais).

Brasil 9 (210)
Alemanha 16 (206)
Itália 4 (126)
Argentina 10 (123)
França 1 (96)
Espanha 8 (88)
Hungria NP (87)
Inglaterra 3 (77)
Uruguai 11 (76)
Suécia NP (74)
Holanda 12 (71)

domingo, 15 de junho de 2014

Sem Puyol

Tal como o Barcelona, seleção espanhola sofre com a ausência de seu líder

            Na metade do primeiro tempo de Espanha x Holanda, a impressão que se tinha era a de que os campeões da Europa e do mundo massacrariam os comandados de Van Gaal. O velho toque de bola envolvente, que envenena o adversário, estava em Salvador. O controle, o domínio, a clarividência, a sincronia: tudo que consolidou o inebriante estilo da Fúria apareceu naqueles trinta e tantos minutos. Os trinta e tantos anos de Xavi não o impediram de abrir caminhos na defesa oponente. Iniesta, o esteta (talvez “Iniesteta” soe melhor), deixava jorrar sua arte na Fonte Nova. Trabalhando em consonância, jogando um futebol gregário e operário, trocando bolas com a precisão do handebol, os jogadores espanhóis pareciam estar prontos para uma nova aula sobre o conceito de futebol.

            O gol que David Silva perdeu poderia ter estendido a (gostosa) sensação de “déjà vu”, ou mesmo decretado irreversivelmente o triunfo de sua equipe. A derrocada do “tiki-taka” se tornaria, então, uma mentira, e os fracassos recentes – tanto da seleção quanto do Barça, sua versão clubística − seriam relativizados. Mas aí vieram o lançamento cinematográfico de Daley Blind, um mergulho de dublê hollywoodiano executado por Van Persie e a igualdade no placar. Na segunda etapa, falhas sucessivas e clamorosas, muito bem exploradas pela Holanda, aniquilaram a Espanha. Fizeram-na passar por situação vexatória, muito similar à que o Barcelona havia vivenciado na semifinal da Champions League 2012-13, contra o Bayern.

            Agora, a crise de identidade, que já vinha dilacerando pelas beiradas as certezas dos últimos seis anos, está definitivamente instaurada. Fala-se em abandonar o modelo de jogo outrora vitorioso e, para muitos, cativante. Vários analistas apontam, com razão, o envelhecimento da espinha dorsal como uma das causas da queda de rendimento − a contusão do virtuoso Thiago Alcântara, claro, acentuou esse problema. No entanto, a fluidez do jogo espanhol na primeira parte do embate contra os holandeses dava indícios de que o sonho ainda não tinha acabado. Mesmo limitada pela convocação bastante conservadora de Del Bosque, a Espanha mostrou, por mais de meia hora, que ainda podia dar caldo.

            Tanto podia que acabou por entorná-lo. Talvez a equipe tivesse conduzido melhor as coisas se sua retaguarda ainda estivesse sob a batuta de Carles Puyol. O zagueiro se aposentou em maio, devido às lesões que o perseguiram nos últimos dois anos. Os longos períodos de afastamento coincidiram com a decadência do Barcelona e da Fúria, embora esta ainda tenha conseguido vencer a última Eurocopa sem ele. Mas a grotesca atuação frente à Argentina em 2010 – 4x1 para os sul-americanos, dois meses após o êxito na África do Sul −, que não contou com os serviços do beque catalão, já mostrava que o respeitado exército espanhol sentia o baque da ausência de seu general.

            Aliás, nesse amistoso, Reina cometeu, com os pés, erro muito semelhante ao de Casillas na partida de anteontem. Sem Puyol, a defesa da Roja soma a indecisão de Ramos aos apagões de Piqué, o que acaba multiplicando a insegurança do capitão Iker. O produto disso também pôde ser observado na final da Copa das Confederações. E, no Barcelona, a equação é a mesma. Basta dizer que Puyol não esteve presente nas duas acachapantes derrotas (0x4 e 0x3) diante do Bayern em 2013, símbolos do aparente fim de ciclo.

            Portanto, quando se diz que “o time da Espanha é praticamente o mesmo que ganhou a última Copa do Mundo”, a frase camufla o desfalque crucial. Obviamente, há outras razões – a estratégia manjada, o outono da carreira de alguns craques – para a fase tempestuosa pela qual passa a seleção espanhola. Porém, é inegável que a sóbria liderança de Carles Puyol, reconhecida e admirada pelos companheiros, faz falta. Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, Barça e Fúria sentiam-se mais protegidos.