sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O recado dos Atléticos

Recuperados após tempos inglórios, dois clubes homônimos enviam mensagem de esperança a torcedores do mundo inteiro

            Em suas existências, as torcidas de clubes de futebol podem passar por épocas de sofrimento e privação. Trata-se de uma mazela inerente à prática de torcer, que o indivíduo só suporta porque combina consigo mesmo que, um dia, a redenção virá, e que toda aquela dor será purgada numa catarse sem precedentes.

            Em casos extremos, o torcedor nem consegue sobreviver à chegada do dia da vingança. Os anos de espera se multiplicam, o sujeito morre e aquele triunfo (não um estadualzinho qualquer ou uma copa meia-boca, mas AQUELE triunfo) vira uma possível herança para os filhos. Ou para os netos – veja-se o martírio do Schalke 04, com seus 57 anos de jejum no campeonato alemão.

            Quando a desforra não precisa chegar ao ponto de virar item de testamento, experimenta-se uma sensação fantástica, misto de paz, alívio e contentamento. O orgulho redivivo ecoa em gritos primais. Fica parecendo que existe justiça no mundo. As coisas voltam para os seus lugares. O que não fazia sentido ganha explicações belas e inesperadas.

            Nick Hornby descreve esse sentimento no clássico “Febre de Bola”. Ele conta que saiu correndo de casa, “com os braços abertos, feito um garotinho brincando de avião”, quando o Arsenal venceu o campeonato da temporada 1988/89. O título anterior acontecera em 1971, e Hornby não se lembra de outra coisa pela qual tivesse esperado tanto em sua vida.

            Se o ano de 1971 foi bom para os Gunners, também o foi para o Galo. No primeiro Campeonato Brasileiro da história – desconsiderando-se, claro, a tosca unificação proposta pela CBF −, os comandados de Telê se sagraram campeões nacionais. Por alguma espécie de revide do destino, o Atlético teve de esperar muito – bem mais que o Arsenal de Hornby – por outra conquista realmente grandiosa (a Copa Conmebol nunca gozou de muito prestígio, por isso não a levaremos em conta na abordagem do jejum atleticano).

            No transcurso das quatro décadas de agonia, houve muitos “quases” para o Galo, como os Brasileiros de 75, 77, 80, 83, 85, 86, 87, 94, 96, 99, 2001, 2009 e 2012. Estar tão perto do messias – o caneco redentor – mas não conseguir tocá-lo tende a ser um revés muito mais sofrido do que ficar flanando pelo meio da tabela. “Quando haverá chance semelhante? Como empreender tamanho esforço outra vez?”, pergunta a si próprio o torcedor, nessas situações. São questionamentos que remetem a Sísifo, personagem da mitologia grega cuja sina consistia em carregar repetidamente uma pesada pedra até o cume de uma montanha, já que ela sempre caía após a extenuante tarefa.

            Além de sonhos frustrados, os anos de seca reservaram ao atleticano algumas humilhações bem doídas, como ver o rival ganhar duas Libertadores, três Copas do Brasil e um Brasileiro, passar o ano de 2005 na Série B e ficar doze clássicos seguidos sem vencer o Cruzeiro, entre 2007 e 2009 (com direito a dois 0x5 no caminho). Houve, ainda, o tétrico vexame do 6x1 no dérbi da última rodada do Brasileirão de 2011, que deu de presente ao inimigo azul a permanência na Série A.

            Na primeira década deste século, o desgaste provocado pelo acúmulo de fracassos em momentos decisivos e pela sucessão de campanhas medíocres levou o Atlético Mineiro a perder um pouco o seu poder de intimidação. E, quando um emblema tradicional como o Galo deixa de ser temido, o torcedor imagina, apavorado, que se trata de um caminho sem volta. A opinião pública se apressa em atirar o grande no lodaçal dos times médios, aqueles que não têm o direito de cobiçar taças expressivas. Irreversivelmente.

            O problema é que, vez por outra, o futebol desautoriza essas sentenças categóricas. Veja-se o caso de outro imenso CAM, o Club Atlético de Madrid. A temporada 2011/12 terminou com o Real Madrid campeão. Do alto de seus 100 pontos, os Merengues nem enxergavam o vizinho pobre, que havia conseguido míseros 56. Faz pouco tempo, mas era praticamente consensual que os ricaços Real e Barcelona dominariam a liga ad eternum. O precipitado decreto ignorou a capacidade de soerguimento de um gigante que desde 1999 não conseguia vencer um dérbi sequer.

            Passar quase 5000 dias sem derrotar o poderoso rival – o tabu foi quebrado na final da Copa do Rei 2012/2013 – foi duro para os torcedores colchoneros. Assim como não deve ter sido muito legal ficar tomando uma cacetada anual do Barcelona da Era Messi (6x0 em 2007, 6x1 em 2008, 5x2 em 2009, pausa em 2010, 5x0 em 2011 e 4x1 em 2012). Nos anos anteriores ao ápice do gênio argentino, as pancadas do Barça não eram periódicas, mas a pasmaceira na tabela, sim: de 1997/98 a 2006/07, o Atlético se acostumou a terminar o campeonato nas imediações do 10ª lugar, chegando mesmo a, numa derrapada mais sinistra, cair para a segunda divisão e ficar duas temporadas (2000/01 e 2001/02) por lá.

            Como se vê, os dois Atléticos, o mineiro e o madrilenho, têm muito em comum: o declínio no início do século, a dor do único rebaixamento, o momentâneo complexo de inferioridade em relação ao arquirrival e, last but not least, a extasiante redenção. A do Galo teve início com o ótimo desempenho no Brasileirão de 2012; o vice, porém, invocou o espectro da impotência em retas finais. O fantasma só viria a ser caçado no ano seguinte, com a conquista da Libertadores. O milagre do pênalti perdido pelo Tijuana (“Defendeu Victor! Defendeu Victor! Defendeu Victor!”, berra até agora o narrador Pequetito, da Rádio Globo BH) e o chocolate no São Paulo – algoz de 77 – foram cerejas do bolo de uma grande massa preta e branca.

            Ainda faltavam, no entanto, alguns ingredientes. A Copa do Brasil de 2014 acrescentou-os, sem economia. O modo como o Galo espezinhou Corinthians, Flamengo e Cruzeiro no certame constituiu o maior enredo de vinganças em série desde “O Conde de Monte Cristo”, obra do século XIX escrita por Alexandre Kalil, digo, Dumas. A virada apoteótica frente ao time paulista devolveu com juros as quedas nos Brasileiros de 90, 94, 99 e 2002, e a delirante reprise diante do Flamengo foi o troco exato, nos mínimos centavos, para os traumas de 80, 81 (Libertadores... Wright?), 87 e 2009 (a derrota dentro de casa na 34ª rodada do Brasileiro derrubou o Galo, que aspirava ao título).

            Vale ressaltar que a epopeia atleticana na Copa do Brasil ocorre numa época em que a divisão desigual de cotas de TV dá a Corinthians e Flamengo grande vantagem pecuniária sobre quaisquer times brasileiros. Esse mesmo tipo de obstáculo, porém num grau mais elevado, teve de ser superado pelo Atlético de Madrid, já que, na Espanha, a disparidade entre o montante destinado à dupla Real/Barça e o que sobra para os demais clubes infla o desequilíbrio há mais tempo.

            O descompasso financeiro só realça o heroísmo da equipe rojiblanca, campeã da Liga, deixando Barcelona e Real para trás, e vice da Champions League em 2013/14. Caiu para o Real, é verdade, mas quem podia imaginar, três anos antes, que o inofensivo Atlético, de orçamento risível se comparado ao do primo rico, eliminaria Milan, Barcelona e Chelsea, alcançaria a final contra o tal primo e a controlaria até os 48 do 2º tempo?

            Tal como o homônimo de Minas, o Atlético de Madrid completou sua vendeta tomando conta do clássico citadino. O Real não conseguiu ganhar, no tempo normal, nenhum dos últimos oito confrontos, e o mais recente terminou como nos sonhos que os colchoneros tinham naquelas 5000 noites do antigo tabu: com um implacável 4 a 0. Coincidentemente, o Galo detém hoje a mesma marca no duelo local: oito jogos de invencibilidade.

            Enquanto assistem a essas incríveis jornadas através da ruína e com destino à glória, torcedores apaixonados de todo o planeta, principalmente os de times que parecem estar sofrendo uma diminuição de tamanho, talvez percebam que fases ruins são coisas do futebol, e que, se nelas faltam vitórias, também sobram sonhos, nascem forças, moldam-se personalidades, lapidam-se amizades, compartilham-se ricas experiências. Isso enobrece a busca da redenção e enche o futebol de vida. Os Atléticos que o digam.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Perto da meta

Luís Fabiano está a 43 gols de fazer o que ninguém consegue há mais de 30 anos: assumir o posto de maior artilheiro de um clube grande do Brasil

            Sim, você já deve saber que, no último domingo, Luís Fabiano marcou seu ducentésimo gol com a camisa do São Paulo. Também é bem provável que você tenha a informação de que Serginho Chulapa, com 242 gols marcados pelo tricolor, pode ser alcançado pelo “Fabuloso”. Mas talvez você não tenha atinado com um detalhe que torna mais especial a escalada do centroavante rumo ao topo da artilharia são-paulina: faz mais de 30 anos a última vez em que o goleador número 1 de um gigante brasileiro foi destronado.

            Aconteceu precisamente em 12 de junho de 1983. Diante de 9.909 espectadores no Parque do Sabiá (público bastante sugestivo), Reinaldo fez dois contra o Uberlândia e ultrapassou Dario. Naquele domingo, o maior ídolo da história do Galo chegou a 213 gols pelo clube. Ele fecharia a conta com 255.

            Marcas históricas vinham sendo batidas com frequência nessa época. Serginho havia superado Gino Orlando em 1982, seu último ano trajando a camisa do São Paulo. Em 1979, Zico e Roberto Dinamite, duas máquinas de botar bola na rede, bateram Dida e Ademir Menezes, respectivamente.

            Os outros distintos membros do clube − Tostão (Cruzeiro), Pelé (Santos), Waldo (Fluminense), Quarentinha (Botafogo), Alcindo (Grêmio), Cláudio (Corinthians), Carlitos (Inter) e Heitor (Palmeiras) – associaram-se em tempos ainda mais remotos, que vão do início da década de 70, quando Tostão deixou Niginho para trás, até a era pré-profissionalismo, na qual o palestrino Heitor construiu sua marca de 327 tentos.

            Nas últimas décadas, o aumento da rotatividade nos times brasileiros e a explosão de transferências para o exterior minaram as possibilidades de novos recordes. Já na Europa, bem menos afetada por esses males, o revezamento no ponto mais alto da artilharia seguiu seu curso natural; se ainda há, no seleto rol, monstros do passado como Gerd Müller (Bayern), Giuseppe Meazza (Inter) e Gunnar Nordahl (Milan), há igualmente figuras hodiernas como Henry (Arsenal), Del Piero (Juventus) e Messi (Barcelona). Em alguns tradicionais emblemas do Velho Continente, o processo sucessório está em pleno andamento: Cristiano Ronaldo (289 gols pelo Real Madrid) vai acabar tomando o cetro de Raúl (323), e Rooney (224 gols pelo Manchester United) deve sobrepujar Bobby Charlton (249).

            No Brasil, a expectativa de “transição no poder” se restringe ao São Paulo, mesmo. Não tivesse sofrido tantas lesões, Fred, no Fluminense desde 2009 (anotou 142 gols desde então), poderia estar no encalço de Waldo (319). As longas ausências tornaram a tarefa quase impossível. Nos outros grandes clubes brasileiros, os reinados tendem a permanecer como estão por um bom tempo. Não há nem sombra de uma leve ameaça.

            Tudo isso enobrece a missão de Luís Fabiano. Ainda faltam 43 gols e, portanto, não vai ser fácil, mas o fato de estar desbravando um território inexplorado há 32 anos é valoroso por si só.