Recuperados após tempos
inglórios, dois clubes homônimos enviam mensagem de esperança a torcedores do
mundo inteiro
Em suas existências, as torcidas de
clubes de futebol podem passar por épocas de sofrimento e privação. Trata-se de
uma mazela inerente à prática de torcer, que o indivíduo só suporta porque
combina consigo mesmo que, um dia, a redenção virá, e que toda aquela dor será
purgada numa catarse sem precedentes.
Em casos extremos, o torcedor nem
consegue sobreviver à chegada do dia da vingança. Os anos de espera se
multiplicam, o sujeito morre e aquele triunfo (não um estadualzinho qualquer ou
uma copa meia-boca, mas AQUELE triunfo) vira uma possível herança para os
filhos. Ou para os netos – veja-se o martírio do Schalke 04, com seus 57 anos
de jejum no campeonato alemão.
Quando a desforra não precisa chegar
ao ponto de virar item de testamento, experimenta-se uma sensação fantástica,
misto de paz, alívio e contentamento. O orgulho redivivo ecoa em gritos
primais. Fica parecendo que existe justiça no mundo. As coisas voltam para os
seus lugares. O que não fazia sentido ganha explicações belas e inesperadas.
Nick Hornby descreve esse sentimento
no clássico “Febre de Bola”. Ele conta que saiu correndo de casa, “com os braços
abertos, feito um garotinho brincando de avião”, quando o Arsenal venceu o campeonato
da temporada 1988/89. O título anterior acontecera em 1971, e Hornby não se
lembra de outra coisa pela qual tivesse esperado tanto em sua vida.
Se o ano de 1971 foi bom para os
Gunners, também o foi para o Galo. No primeiro Campeonato Brasileiro da
história – desconsiderando-se, claro, a tosca unificação proposta pela CBF −,
os comandados de Telê se sagraram campeões nacionais. Por alguma espécie de
revide do destino, o Atlético teve de esperar muito – bem mais que o Arsenal de
Hornby – por outra conquista realmente grandiosa (a Copa Conmebol nunca gozou
de muito prestígio, por isso não a levaremos em conta na abordagem do jejum
atleticano).
No transcurso das quatro décadas de agonia,
houve muitos “quases” para o Galo, como os Brasileiros de 75, 77, 80, 83, 85,
86, 87, 94, 96, 99, 2001, 2009 e 2012. Estar tão perto do messias – o caneco
redentor – mas não conseguir tocá-lo tende a ser um revés muito mais sofrido do
que ficar flanando pelo meio da tabela. “Quando haverá chance semelhante? Como
empreender tamanho esforço outra vez?”, pergunta a si próprio o torcedor,
nessas situações. São questionamentos que remetem a Sísifo, personagem da
mitologia grega cuja sina consistia em carregar repetidamente uma pesada pedra
até o cume de uma montanha, já que ela sempre caía após a extenuante tarefa.
Além de sonhos frustrados, os anos
de seca reservaram ao atleticano algumas humilhações bem doídas, como ver o
rival ganhar duas Libertadores, três Copas do Brasil e um Brasileiro, passar o
ano de 2005 na Série B e ficar doze clássicos seguidos sem vencer o Cruzeiro,
entre 2007 e 2009 (com direito a dois 0x5 no caminho). Houve, ainda, o tétrico vexame
do 6x1 no dérbi da última rodada do Brasileirão de 2011, que deu de presente ao
inimigo azul a permanência na Série A.
Na primeira década deste século, o
desgaste provocado pelo acúmulo de fracassos em momentos decisivos e pela
sucessão de campanhas medíocres levou o Atlético Mineiro a perder um pouco o
seu poder de intimidação. E, quando um emblema tradicional como o Galo deixa de
ser temido, o torcedor imagina, apavorado, que se trata de um caminho sem
volta. A opinião pública se apressa em atirar o grande no lodaçal dos times
médios, aqueles que não têm o direito de cobiçar taças expressivas.
Irreversivelmente.
O problema é que, vez por outra, o
futebol desautoriza essas sentenças categóricas. Veja-se o caso de outro imenso
CAM, o Club Atlético de Madrid. A temporada 2011/12 terminou com o Real Madrid
campeão. Do alto de seus 100 pontos, os Merengues nem enxergavam o vizinho
pobre, que havia conseguido míseros 56. Faz pouco tempo, mas era praticamente
consensual que os ricaços Real e Barcelona dominariam a liga ad eternum. O precipitado decreto
ignorou a capacidade de soerguimento de um gigante que desde 1999 não conseguia
vencer um dérbi sequer.
Passar quase 5000 dias sem derrotar
o poderoso rival – o tabu foi quebrado na final da Copa do Rei 2012/2013 – foi
duro para os torcedores colchoneros. Assim como não deve ter sido muito legal
ficar tomando uma cacetada anual do Barcelona da Era Messi (6x0 em 2007, 6x1 em
2008, 5x2 em 2009, pausa em 2010, 5x0 em 2011 e 4x1 em 2012). Nos anos
anteriores ao ápice do gênio argentino, as pancadas do Barça não eram
periódicas, mas a pasmaceira na tabela, sim: de 1997/98 a 2006/07, o Atlético
se acostumou a terminar o campeonato nas imediações do 10ª lugar, chegando
mesmo a, numa derrapada mais sinistra, cair para a segunda divisão e ficar duas
temporadas (2000/01 e 2001/02) por lá.
Como se vê, os dois Atléticos, o
mineiro e o madrilenho, têm muito em comum: o declínio no início do século, a
dor do único rebaixamento, o momentâneo complexo de inferioridade em relação ao
arquirrival e, last but not least, a extasiante
redenção. A do Galo teve início com o ótimo desempenho no Brasileirão de 2012;
o vice, porém, invocou o espectro da impotência em retas finais. O fantasma só
viria a ser caçado no ano seguinte,
com a conquista da Libertadores. O milagre do pênalti perdido pelo Tijuana
(“Defendeu Victor! Defendeu Victor! Defendeu Victor!”, berra até agora o
narrador Pequetito, da Rádio Globo BH) e o chocolate no São Paulo – algoz de 77
– foram cerejas do bolo de uma grande massa preta e branca.
Ainda faltavam, no entanto, alguns
ingredientes. A Copa do Brasil de 2014 acrescentou-os, sem economia. O modo
como o Galo espezinhou Corinthians, Flamengo e Cruzeiro no certame constituiu o
maior enredo de vinganças em série desde “O Conde de Monte Cristo”, obra do
século XIX escrita por Alexandre Kalil, digo, Dumas. A virada apoteótica frente
ao time paulista devolveu com juros as quedas nos Brasileiros de 90, 94, 99 e
2002, e a delirante reprise diante do Flamengo foi o troco exato, nos mínimos
centavos, para os traumas de 80, 81 (Libertadores... Wright?), 87 e 2009 (a
derrota dentro de casa na 34ª rodada do Brasileiro derrubou o Galo, que
aspirava ao título).
Vale ressaltar que a epopeia
atleticana na Copa do Brasil ocorre numa época em que a divisão desigual de
cotas de TV dá a Corinthians e Flamengo grande vantagem pecuniária sobre
quaisquer times brasileiros. Esse mesmo tipo de obstáculo, porém num grau mais
elevado, teve de ser superado pelo Atlético de Madrid, já que, na Espanha, a
disparidade entre o montante destinado à dupla Real/Barça e o que sobra para os
demais clubes infla o desequilíbrio há mais tempo.
O descompasso financeiro só realça o
heroísmo da equipe rojiblanca, campeã
da Liga, deixando Barcelona e Real para trás, e vice da Champions League em
2013/14. Caiu para o Real, é verdade, mas quem podia imaginar, três anos antes,
que o inofensivo Atlético, de orçamento risível se comparado ao do primo rico, eliminaria
Milan, Barcelona e Chelsea, alcançaria a final contra o tal primo e a controlaria
até os 48 do 2º tempo?
Tal como o homônimo de Minas, o
Atlético de Madrid completou sua vendeta tomando conta do clássico citadino. O
Real não conseguiu ganhar, no tempo normal, nenhum dos últimos oito confrontos,
e o mais recente terminou como nos sonhos que os colchoneros tinham naquelas
5000 noites do antigo tabu: com um implacável 4 a 0. Coincidentemente, o Galo
detém hoje a mesma marca no duelo local: oito jogos de invencibilidade.
Enquanto assistem a essas incríveis
jornadas através da ruína e com destino à glória, torcedores apaixonados de
todo o planeta, principalmente os de times que parecem estar sofrendo uma
diminuição de tamanho, talvez percebam que fases ruins são coisas do futebol, e
que, se nelas faltam vitórias, também sobram sonhos, nascem forças, moldam-se
personalidades, lapidam-se amizades, compartilham-se ricas experiências. Isso
enobrece a busca da redenção e enche o futebol de vida. Os Atléticos que o
digam.
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