quarta-feira, 12 de abril de 2017

Eternas ondas azuis

            Dias atrás, peguei-me pensando em um presente que ganhei quando tinha por volta de 10 anos de idade. Foi um radinho de pilha, que me acompanhou por muito tempo. Escutei centenas de jogos do Vasco ─ sim, centenas: a TV ainda não se pretendia tão onipresente ─ por intermédio do pequeno artefato azul, de cuja marca não me lembro ao certo. Parceiro de derrotas pungentes, empates de toda sorte e vitórias redentoras, esse rádio me fez amigo íntimo do Garotinho José Carlos Araújo, do Apolinho Washington Rodrigues, do mestre Luiz Mendes e de tantas outras feras do jornalismo esportivo, alegrando-me as longas e inolvidáveis tardes de “Enquanto a Bola Não Rola” e as serenas noites de “Panorama Esportivo”. Não poderia ter havido para mim jeito melhor de entreter o fim da infância e o avanço da adolescência. Expresso a minha mais profunda e terna gratidão à pessoa especialíssima que me deu esse radinho de pilha azul, e aqui começa a parte mais importante deste texto.

            Foi minha avó Wanilda que me deu o pequeno rádio, e não consigo evitar, neste momento, que as lágrimas inundem o teclado do computador. Minha ovó, como eu costumava chamá-la, faleceu anteontem à noite, em casa. Não deu tempo de eu contar a ela o pensamento que tive sobre um dos mais singelos e bonitos presentes que já recebi. Com sua sabedoria simples e seu amor incondicional à família, Wanilda teve a sensibilidade de perceber que o neto estava começando a se interessar muito pelas partidas de futebol. Então, com o magro dinheirinho da pensão de meu avô, empreendeu a sublime e generosa iniciativa.

            Não pude, ovó, dizer-te isso, e me martirizo pela falha. Tento repará-la agora com este texto. Saiba que, a cada jogo do Vasco, meus gritos de gol reverberarão até chegarem aí a você, na forma de um beijo. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Temporal atemporal

No ano 2000, Romário fez gols aos cântaros

            Quando um craque do futebol celebra uma data redonda, chovem dados e análises a respeito do que ele fez com ela, a redonda. Foi assim na última sexta, quando Romário completou cinquenta anos. Mas está redondamente enganado quem supõe que o aguaceiro de estatísticas e historietas esgota o assunto, explorando-o por inteiro. Na minha mal-ajambrada sombrinha, não pingou nada sobre uma incrível marca atingida no ano 2000: 72 gols em jogos oficiais. Àquela altura, somente Gerd Müller (85 gols em 1972) e Pelé (75 gols em 1958) tinham números superiores. Ao marcar torrenciais 91 gols em 2012, Lionel Messi superou todas essas performances.

         Hoje Romário é, portanto, o número 4 de uma lista respeitabilíssima, algo digno de ser lembrado em suas “bodas de filó”. O toró de gols no ano 2000 foi mesmo espantoso. Um dilúvio que acompanhei atentamente, dada a intensidade abismal que a virada do milênio teve para os vascaínos.

           Ao todo, como já dissemos, o genial centroavante foi às redes 72 vezes. Cheguei a esse número por meio de pesquisa própria, já que fontes diversas forneciam informações conflitantes. No estadual, Romário anotou 19 gols, tendo sido o artilheiro do certame. Antes do carioca, já havia feito 12 no Torneio Rio-São Paulo e 3 no Mundial Interclubes. Na Copa do Brasil, o Vasco, precocemente eliminado, contou com apenas 1 gol de Romário. Na Mercosul, foram 11, e, no Brasileirão, 19. Pela seleção, 7 tentos, quatro deles contra a Venezuela, fora de casa, ocasião em que Juninho Pernambucano, Juninho Paulista e Euller, colegas de uma estupenda linha de frente cruzmaltina, também foram titulares. Os amistosos, ressalto, estão fora da conta.

             Um dos meus três ou quatro leitores (quatro se eu conseguir obrigar minha esposa a ler isto) pode contestar os 19 gols da Copa João Havelange, no que estaria absolutamente correto: foram 20. Todavia, o segundo jogo da final contra o São Caetano só aconteceu em janeiro de 2001, fato que exclui da soma o gol de Romário nesse jogo.

         Mais impressionante do que o altíssimo índice pluviométrico do Baixinho em 2000 foi a idade com que ele executou a façanha. Seu ano mais chuvoso não veio nos tempos de menino lépido nem no auge em Barcelona, mas já com 34 anos. A explicação talvez resida, em parte, na fantástica parceria com Euller. Se Bebeto foi a bola-metade de Romário, Euller foi uma espécie de segundo casamento, da chuva com o vento.

           Numa semana em que tanto se falou sobre o artilheiro carioca e cinquentão, não ouvi nenhuma menção a uma de suas mais impressionantes marcas. Será que não se lembram do temporal de gols em 2000? Esquisito. Meus três leitores (minha esposa desistiu no primeiro parágrafo), pelo menos, carregarão consigo a memória dessa proeza atemporal.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O recado dos Atléticos

Recuperados após tempos inglórios, dois clubes homônimos enviam mensagem de esperança a torcedores do mundo inteiro

            Em suas existências, as torcidas de clubes de futebol podem passar por épocas de sofrimento e privação. Trata-se de uma mazela inerente à prática de torcer, que o indivíduo só suporta porque combina consigo mesmo que, um dia, a redenção virá, e que toda aquela dor será purgada numa catarse sem precedentes.

            Em casos extremos, o torcedor nem consegue sobreviver à chegada do dia da vingança. Os anos de espera se multiplicam, o sujeito morre e aquele triunfo (não um estadualzinho qualquer ou uma copa meia-boca, mas AQUELE triunfo) vira uma possível herança para os filhos. Ou para os netos – veja-se o martírio do Schalke 04, com seus 57 anos de jejum no campeonato alemão.

            Quando a desforra não precisa chegar ao ponto de virar item de testamento, experimenta-se uma sensação fantástica, misto de paz, alívio e contentamento. O orgulho redivivo ecoa em gritos primais. Fica parecendo que existe justiça no mundo. As coisas voltam para os seus lugares. O que não fazia sentido ganha explicações belas e inesperadas.

            Nick Hornby descreve esse sentimento no clássico “Febre de Bola”. Ele conta que saiu correndo de casa, “com os braços abertos, feito um garotinho brincando de avião”, quando o Arsenal venceu o campeonato da temporada 1988/89. O título anterior acontecera em 1971, e Hornby não se lembra de outra coisa pela qual tivesse esperado tanto em sua vida.

            Se o ano de 1971 foi bom para os Gunners, também o foi para o Galo. No primeiro Campeonato Brasileiro da história – desconsiderando-se, claro, a tosca unificação proposta pela CBF −, os comandados de Telê se sagraram campeões nacionais. Por alguma espécie de revide do destino, o Atlético teve de esperar muito – bem mais que o Arsenal de Hornby – por outra conquista realmente grandiosa (a Copa Conmebol nunca gozou de muito prestígio, por isso não a levaremos em conta na abordagem do jejum atleticano).

            No transcurso das quatro décadas de agonia, houve muitos “quases” para o Galo, como os Brasileiros de 75, 77, 80, 83, 85, 86, 87, 94, 96, 99, 2001, 2009 e 2012. Estar tão perto do messias – o caneco redentor – mas não conseguir tocá-lo tende a ser um revés muito mais sofrido do que ficar flanando pelo meio da tabela. “Quando haverá chance semelhante? Como empreender tamanho esforço outra vez?”, pergunta a si próprio o torcedor, nessas situações. São questionamentos que remetem a Sísifo, personagem da mitologia grega cuja sina consistia em carregar repetidamente uma pesada pedra até o cume de uma montanha, já que ela sempre caía após a extenuante tarefa.

            Além de sonhos frustrados, os anos de seca reservaram ao atleticano algumas humilhações bem doídas, como ver o rival ganhar duas Libertadores, três Copas do Brasil e um Brasileiro, passar o ano de 2005 na Série B e ficar doze clássicos seguidos sem vencer o Cruzeiro, entre 2007 e 2009 (com direito a dois 0x5 no caminho). Houve, ainda, o tétrico vexame do 6x1 no dérbi da última rodada do Brasileirão de 2011, que deu de presente ao inimigo azul a permanência na Série A.

            Na primeira década deste século, o desgaste provocado pelo acúmulo de fracassos em momentos decisivos e pela sucessão de campanhas medíocres levou o Atlético Mineiro a perder um pouco o seu poder de intimidação. E, quando um emblema tradicional como o Galo deixa de ser temido, o torcedor imagina, apavorado, que se trata de um caminho sem volta. A opinião pública se apressa em atirar o grande no lodaçal dos times médios, aqueles que não têm o direito de cobiçar taças expressivas. Irreversivelmente.

            O problema é que, vez por outra, o futebol desautoriza essas sentenças categóricas. Veja-se o caso de outro imenso CAM, o Club Atlético de Madrid. A temporada 2011/12 terminou com o Real Madrid campeão. Do alto de seus 100 pontos, os Merengues nem enxergavam o vizinho pobre, que havia conseguido míseros 56. Faz pouco tempo, mas era praticamente consensual que os ricaços Real e Barcelona dominariam a liga ad eternum. O precipitado decreto ignorou a capacidade de soerguimento de um gigante que desde 1999 não conseguia vencer um dérbi sequer.

            Passar quase 5000 dias sem derrotar o poderoso rival – o tabu foi quebrado na final da Copa do Rei 2012/2013 – foi duro para os torcedores colchoneros. Assim como não deve ter sido muito legal ficar tomando uma cacetada anual do Barcelona da Era Messi (6x0 em 2007, 6x1 em 2008, 5x2 em 2009, pausa em 2010, 5x0 em 2011 e 4x1 em 2012). Nos anos anteriores ao ápice do gênio argentino, as pancadas do Barça não eram periódicas, mas a pasmaceira na tabela, sim: de 1997/98 a 2006/07, o Atlético se acostumou a terminar o campeonato nas imediações do 10ª lugar, chegando mesmo a, numa derrapada mais sinistra, cair para a segunda divisão e ficar duas temporadas (2000/01 e 2001/02) por lá.

            Como se vê, os dois Atléticos, o mineiro e o madrilenho, têm muito em comum: o declínio no início do século, a dor do único rebaixamento, o momentâneo complexo de inferioridade em relação ao arquirrival e, last but not least, a extasiante redenção. A do Galo teve início com o ótimo desempenho no Brasileirão de 2012; o vice, porém, invocou o espectro da impotência em retas finais. O fantasma só viria a ser caçado no ano seguinte, com a conquista da Libertadores. O milagre do pênalti perdido pelo Tijuana (“Defendeu Victor! Defendeu Victor! Defendeu Victor!”, berra até agora o narrador Pequetito, da Rádio Globo BH) e o chocolate no São Paulo – algoz de 77 – foram cerejas do bolo de uma grande massa preta e branca.

            Ainda faltavam, no entanto, alguns ingredientes. A Copa do Brasil de 2014 acrescentou-os, sem economia. O modo como o Galo espezinhou Corinthians, Flamengo e Cruzeiro no certame constituiu o maior enredo de vinganças em série desde “O Conde de Monte Cristo”, obra do século XIX escrita por Alexandre Kalil, digo, Dumas. A virada apoteótica frente ao time paulista devolveu com juros as quedas nos Brasileiros de 90, 94, 99 e 2002, e a delirante reprise diante do Flamengo foi o troco exato, nos mínimos centavos, para os traumas de 80, 81 (Libertadores... Wright?), 87 e 2009 (a derrota dentro de casa na 34ª rodada do Brasileiro derrubou o Galo, que aspirava ao título).

            Vale ressaltar que a epopeia atleticana na Copa do Brasil ocorre numa época em que a divisão desigual de cotas de TV dá a Corinthians e Flamengo grande vantagem pecuniária sobre quaisquer times brasileiros. Esse mesmo tipo de obstáculo, porém num grau mais elevado, teve de ser superado pelo Atlético de Madrid, já que, na Espanha, a disparidade entre o montante destinado à dupla Real/Barça e o que sobra para os demais clubes infla o desequilíbrio há mais tempo.

            O descompasso financeiro só realça o heroísmo da equipe rojiblanca, campeã da Liga, deixando Barcelona e Real para trás, e vice da Champions League em 2013/14. Caiu para o Real, é verdade, mas quem podia imaginar, três anos antes, que o inofensivo Atlético, de orçamento risível se comparado ao do primo rico, eliminaria Milan, Barcelona e Chelsea, alcançaria a final contra o tal primo e a controlaria até os 48 do 2º tempo?

            Tal como o homônimo de Minas, o Atlético de Madrid completou sua vendeta tomando conta do clássico citadino. O Real não conseguiu ganhar, no tempo normal, nenhum dos últimos oito confrontos, e o mais recente terminou como nos sonhos que os colchoneros tinham naquelas 5000 noites do antigo tabu: com um implacável 4 a 0. Coincidentemente, o Galo detém hoje a mesma marca no duelo local: oito jogos de invencibilidade.

            Enquanto assistem a essas incríveis jornadas através da ruína e com destino à glória, torcedores apaixonados de todo o planeta, principalmente os de times que parecem estar sofrendo uma diminuição de tamanho, talvez percebam que fases ruins são coisas do futebol, e que, se nelas faltam vitórias, também sobram sonhos, nascem forças, moldam-se personalidades, lapidam-se amizades, compartilham-se ricas experiências. Isso enobrece a busca da redenção e enche o futebol de vida. Os Atléticos que o digam.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Perto da meta

Luís Fabiano está a 43 gols de fazer o que ninguém consegue há mais de 30 anos: assumir o posto de maior artilheiro de um clube grande do Brasil

            Sim, você já deve saber que, no último domingo, Luís Fabiano marcou seu ducentésimo gol com a camisa do São Paulo. Também é bem provável que você tenha a informação de que Serginho Chulapa, com 242 gols marcados pelo tricolor, pode ser alcançado pelo “Fabuloso”. Mas talvez você não tenha atinado com um detalhe que torna mais especial a escalada do centroavante rumo ao topo da artilharia são-paulina: faz mais de 30 anos a última vez em que o goleador número 1 de um gigante brasileiro foi destronado.

            Aconteceu precisamente em 12 de junho de 1983. Diante de 9.909 espectadores no Parque do Sabiá (público bastante sugestivo), Reinaldo fez dois contra o Uberlândia e ultrapassou Dario. Naquele domingo, o maior ídolo da história do Galo chegou a 213 gols pelo clube. Ele fecharia a conta com 255.

            Marcas históricas vinham sendo batidas com frequência nessa época. Serginho havia superado Gino Orlando em 1982, seu último ano trajando a camisa do São Paulo. Em 1979, Zico e Roberto Dinamite, duas máquinas de botar bola na rede, bateram Dida e Ademir Menezes, respectivamente.

            Os outros distintos membros do clube − Tostão (Cruzeiro), Pelé (Santos), Waldo (Fluminense), Quarentinha (Botafogo), Alcindo (Grêmio), Cláudio (Corinthians), Carlitos (Inter) e Heitor (Palmeiras) – associaram-se em tempos ainda mais remotos, que vão do início da década de 70, quando Tostão deixou Niginho para trás, até a era pré-profissionalismo, na qual o palestrino Heitor construiu sua marca de 327 tentos.

            Nas últimas décadas, o aumento da rotatividade nos times brasileiros e a explosão de transferências para o exterior minaram as possibilidades de novos recordes. Já na Europa, bem menos afetada por esses males, o revezamento no ponto mais alto da artilharia seguiu seu curso natural; se ainda há, no seleto rol, monstros do passado como Gerd Müller (Bayern), Giuseppe Meazza (Inter) e Gunnar Nordahl (Milan), há igualmente figuras hodiernas como Henry (Arsenal), Del Piero (Juventus) e Messi (Barcelona). Em alguns tradicionais emblemas do Velho Continente, o processo sucessório está em pleno andamento: Cristiano Ronaldo (289 gols pelo Real Madrid) vai acabar tomando o cetro de Raúl (323), e Rooney (224 gols pelo Manchester United) deve sobrepujar Bobby Charlton (249).

            No Brasil, a expectativa de “transição no poder” se restringe ao São Paulo, mesmo. Não tivesse sofrido tantas lesões, Fred, no Fluminense desde 2009 (anotou 142 gols desde então), poderia estar no encalço de Waldo (319). As longas ausências tornaram a tarefa quase impossível. Nos outros grandes clubes brasileiros, os reinados tendem a permanecer como estão por um bom tempo. Não há nem sombra de uma leve ameaça.

            Tudo isso enobrece a missão de Luís Fabiano. Ainda faltam 43 gols e, portanto, não vai ser fácil, mas o fato de estar desbravando um território inexplorado há 32 anos é valoroso por si só.

sábado, 12 de julho de 2014

Marcelo, o elo

Entre os técnicos brasileiros, o cruzeirense seria a melhor escolha para o atual cenário

            Será que, depois do murro que deixou o futebol brasileiro sem sentidos, ainda haverá quem defenda a tese de que apenas o resultado tem relevância? O título de 2002, conquistado com um time que também tinha um estranho vazio no meio-campo – mas que, com sorte, clima de família, atacantes portentosos, laterais fortes e adversários medíocres, acabou levantando a taça – havia deixado a impressão de que o caminho do minimalismo era cômodo e suficiente. Por que convocar Alex e Juninho Pernambucano e ter o trabalho de arquitetar um jogo mais engenhoso, se a vitória podia vir com voluntariosos cabeças-de-área e jogadas epifânicas do poderoso ataque? O êxito na Ásia fermentou em demasia a receita do pragmatismo absoluto. Se vencíamos daquele jeito, devia estar tudo certo por aqui. Calendário? Base? Regulamentos? Presença nos estádios? Estudos táticos? Patacoadas. Somos malandros, sabemos como fazer.

            Foi necessário tomar uma pancada traumatizante. De outra forma, qualquer reflexão mais profunda seria sufocada pelo velho discurso prepotente. Em meia hora, a seleção alemã exprimiu, na linguagem dos gols, o que pessoas sérias, que amam de verdade o futebol, já vinham dizendo há tempos. A diferença é que os sete tentos entraram em todos os lares do Brasil. Pregaram um evangelho que muitos ainda não tinham podido ouvir. Sem versão repaginada, sem filtro global, sem campanhas patrocinadas, sem o alarido dos continuístas, sem o teatro mambembe das coletivas, sem o sono que confunde a mente no segundo tempo do jogo pós-novela.

            Para alguns, o aniquilamento que se viu no Mineirão não foi o bastante. A CBF, por exemplo, acena com a possível manutenção da comissão técnica da seleção. Talvez a cavalar dose de absurdo contida nesse posicionamento advenha justamente da patente necessidade de mudança − se aceita a obviedade ululante, a entidade avaliza o clamor por uma reestruturação cujo principal alvo seria ela própria. Então, melhor fingir que não entendeu o que se passou. Está tudo bem. Temos os melhores jogadores. Um técnico vencedor, rei do mata-mata. Estaduais invariavelmente aprovados pelos presidentes das federações. Árbitros preparados, estádios confortáveis. Um reles resultado adverso não pode estragar um trabalho de anos e anos. Muitos anos. Décadas.

            Ainda não dá para saber se tal cinismo prevalecerá ou se as pressões da opinião pública demoverão os detentores do poder. No segundo caso, as discussões acerca do perfil de quem deve assumir a seleção têm espaço importante na pauta de reformulações. Já passou da hora de o Brasil voltar a praticar, num Mundial, o que dele se espera: um futebol envolvente e contagiante, munido de recursos diversificados, apuro tático, criatividade, fluidez. Portanto, a escolha de um novo técnico deve se coadunar com essa necessidade. A gente não quer só taça erguida. A gente quer taça erguida, fruição e arte.

            Apesar dos recentes títulos de Brasileiro, Libertadores e Mundial, credenciais significativas para um postulante ao cobiçado cargo, Tite não parece ser o homem talhado para fazer uma equipe jogar um futebol vistoso, com pitadas de encantamento. Muricy Ramalho e Abel Braga também têm boas coleções de conquistas, mas esbarram na mesma limitação. O problema de Luxemburgo é distinto: alguns dos times por ele comandados encheram os olhos, como convém aos grandes esquadrões, mas o elixir que ele fabricava escorreu por algum ralo há cerca de 10 anos.

            Descartados os figurões do ofício, sobram a alternativa estrangeira ou a aposta em um nome menos badalado do circuito nacional. A primeira opção entre os forasteiros seria, claro, Guardiola, mas talvez ele não deseje abandonar o Bayern a curto prazo, e a questão é urgente (para todo o país, menos a CBF). Afora Pep, não haveria tantas soluções vindas do exterior. Embora Mourinho pudesse causar impacto, o tipo de jogo por ele proposto não satisfaria a sede de fascínio do brasileiro que realmente gosta de futebol.

            Entre os técnicos brasileiros sem tanta grife, Marcelo Oliveira preenche as exigências do atual momento histórico. Ele poderia ser o elo entre a intimidade com o futebol moderno e a estima pela magia do passado. Magia presente num certo Brasil 8x0 Bolívia de 14 de julho de 1977, que qualificou a seleção para a Copa do ano seguinte. Essa foi a mais importante das sete partidas de Marcelo pela seleção, e ele assinalou o último gol. A assistência foi de Reinaldo, de calcanhar. O atual técnico do Cruzeiro acabou não sendo chamado para o Mundial da Argentina. Vejamos por que ele atende aos requisitos para ir ao da Rússia:

1- Marcelo sabe selecionar
As convocações das últimas Copas foram bem problemáticas. Este já é o segundo Mundial seguido em que o técnico olha para o banco e fica desolado. No Cruzeiro, a situação é oposta: Marcelo encontra entre os reservas um farto rol de substitutos à altura dos titulares. Isso se dá graças à sua habilidade para indicar contratações. Enquanto outros técnicos incham o elenco apontando vários medalhões decadentes que, depois de poucos meses sem brilho, ficam encostados, Marcelo consegue, com o olho clínico de quem trabalhou em categorias de base, prover ao time as peças certas. Ricardo Goulart, Éverton Ribeiro e William, que se entenderam muito bem em 2013, são ótimos exemplos disso. Os três se revezaram com os veteranos Dagoberto, Borges e Júlio Baptista, numa mescla equilibrada que proporcionou ao Cruzeiro seu mais importante troféu recente. É simples: selecionador precisa saber selecionar. E Marcelo sabe.

2- Marcelo é sereno
Chega de treinadores beligerantes. As entrevistas coletivas se transformam em combates verbais repletos de estocadas, alfinetadas, ironias e desconfiança mútua. A seleção anseia por um técnico que não necessite de inimigos. Nem na imprensa, nem na arbitragem. Um técnico que poupe suas energias para criar estratégias, examinar os oponentes, incrementar o jogo de sua equipe. Marcelo se encaixa nesse perfil. Seus depoimentos, mesmo em circunstâncias estressantes, costumam ser tranquilos e lúcidos.

3- Marcelo aprecia o futebol bem jogado
            “Nosso time é calculista, mesmo”, disse Muricy ao fim de Botafogo 0x2 São Paulo, partida crucial do Campeonato Brasileiro de 2007. Era o auge do Muricybol, “método” vencedor e chatíssimo. O Corinthians de Tite e o Fluminense de Abel também não eram agradáveis de se ver. A medonha inclinação dos campeões brasileiros para um futebol feioso deu uma pausa no ano passado, quando o Cruzeiro, sob a batuta de Marcelo Oliveira, fez exibições empolgantes. Das 20 equipes da Série A de 2014, a da Raposa é talvez a única que não fica refém da correria ou do chuveirinho, pois se sente à vontade para tabelar pelo meio e cria espaços para o arremate de longa distância. Marcelo valoriza o casamento de estilos individuais, e o que se vê em campo é um conjunto entrosado, harmonioso. O Coritiba de 2011 também contava com essas valências.

4- Marcelo aplicou 6 em Felipão
            Na Copa do Brasil de 2011, o Coxa esmagou o Palmeiras, no Couto Pereira. Quatro gols no primeiro tempo e mais dois no segundo decretaram a segunda pior derrota de Scolari em sua carreira de treinador.

5- Marcelo está em alta
            Futebol é momento, diz o axioma. Assim como os jogadores, técnicos têm fases. Em 2010, Dorival Júnior vinha de trabalhos bem-sucedidos em grandes clubes e montou um Santos cintilante. Fazia sentido, à época, cogitá-lo para a seleção. Ele estava com confiança. Hoje, ninguém pensaria em indicá-lo. Marcelo Oliveira está em alta há alguns anos. Deve-se aproveitar a fase boa de um técnico competente. É mais sensato do que pinçar um novato com fama (como Falcão e Dunga) ou jogar as fichas num expoente ultrapassado. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Amanhã não é 23


Felipão fala em “12, 13, 14”, mas a verdade é que, dos 23 jogadores por ele convocados, pouquíssimos deverão atuar no Mundial de 2018
 

            Felipão deu pistas, na entrevista coletiva de hoje à tarde, de que acalenta a esperança de dirigir a seleção em mais um Mundial. Seria um contrassenso. Por muito menos, vários outros treinadores de seleção foram demitidos. Mas digamos que a CBF, afeita a ideias descabidas, comprasse o sonho. Teria o “gaúcho de bigode”, como diz a propaganda de um refrigerante, coragem de levar, para o Mundial da Rússia, a base do time humilhado em 2014?

            Crê-se que não, apesar de ele próprio ter preconizado que 12, 13 ou 14 atletas do atual plantel estarão na próxima Copa. E, se houver mudança no comando – essa é a consequência normal para a calamitosa derrota de ontem −, fica ainda mais forte o pendor para mudanças substanciais no grupo de jogadores.

            Leia, abaixo, análises sobre as perspectivas dos 23 escolhidos de Felipão quanto à disputa da Copa de 2018. Os que vêm acompanhados de um NÃO parecem cartas fora do baralho. DIFICILMENTE, POSSIVELMENTE, PROVAVELMENTE e SIM são os outros graus da escala estabelecida.

            É importante salientar que a avaliação aqui realizada tomou como certa a substituição no cargo de treinador. Adiantamos que há apenas um SIM e um PROVAVELMENTE na lista. Há quatro ocorrências de DIFICILMENTE, seis de POSSIVELMENTE e onze de NÃO.
 

Júlio César - NÃO

O ciclo do titular brasileiro em duas Copas acabou. Carreira clubística decadente e idade pesam, mas a certeza do fim da linha também vem do fardo emocional que ele insiste em carregar. Tentou livrar-se dele após o heroísmo contra o Chile, mas o desabafo acabou se revelando precipitado.
 

Victor - DIFICILMENTE

Disse, antes da Copa, que a geração atual de goleiros brasileiros é a melhor de toda a história. A geração anterior a esta contou com Marcos, Dida e Ceni. Não deve ir à Rússia.
 

Jefferson - POSSIVELMENTE

Embora seja um bom goleiro, nunca foi aposta unânime para a baliza brasileira. Sua continuidade na seleção dependerá das predileções do novo técnico e dos rumos profissionais. Chances moderadas.

 
Maicon - NÃO

Estará com 36 anos no próximo Mundial. Para um lateral cujas virtudes dependem do vigor físico, 2018 parece ser um horizonte inalcançável. Além disso, há também o desgaste de dois fracassos em Copas.

 
Daniel Alves - NÃO

Barrado no transcurso da competição e em queda técnica, é outro veterano que não será aproveitado no próximo Mundial.
 

Marcelo - DIFICILMENTE

Reserva no Real Madrid, o habilidoso Marcelo fez uma Copa com a cara de sua trajetória: um tanto irregular. Apesar da juventude (contará apenas 30 anos em 2018), é nome quase descartado num ambiente que anseia por renovação.
 

Maxwell – NÃO

A crise na lateral esquerda é mundial, tanto que o limitadíssimo Höwedes ocupa a posição na forte equipe alemã. A presença de Maxwell na Copa também exemplifica a carência. Talvez nunca mais volte a ser convocado.
 

Thiago Silva - POSSIVELMENTE

O fato de não ter participado da tragédia no Mineirão reforça sua natural candidatura a 2018. Por outro lado, o capitão foi, em determinado momento do certame, o símbolo da fragilidade emocional do grupo. O choro pode respingar em seu futuro na seleção.
 

David Luiz - POSSIVELMENTE

Imediatamente após a hecatombe, declarou que ainda almeja ganhar uma Copa. Terá 31 anos em 2018. Destacou-se em algumas partidas do Mundial, mas a imagem tão profundamente vinculada a esta sofrida campanha em casa pode minar seu caminho.
 

Dante - NÃO

O vídeo dos gols da fatídica semifinal, que será reproduzido à exaustão por muito tempo, mostra Dante desnorteado, correndo a esmo. As cenas, ao contrário de o condenarem, absolvem-no de não ter tentado reagir. O beque do Bayern não teve culpa alguma, mas não é mais um garoto e deve deixar a seleção.
 

Henrique - NÃO

Homem de confiança de um técnico que não deve permanecer no cargo. Foi um dos poucos nomes questionados numa convocação estranhamente “consensual”. Quase nenhuma chance de ir à Rússia.

 
Paulinho - POSSIVELMENTE

Um dos mais complicados prognósticos. Claudicante em sua temporada de estreia na Europa e em sua primeira Copa, o ídolo corintiano tem potencial e idade para chegar com fôlego a 2018. Saiu do Mineirão com ferimentos leves, pois não atuou no cataclísmico primeiro tempo.
 

Luiz Gustavo - DIFICILMENTE

Pertence a uma linhagem de volantes que, depois do fiasco histórico, deve perder espaço para meias capazes de marcar e organizar o jogo, como os algozes Schweinsteiger, Khedira, Kroos e Özil. Ainda assim, performances bastante dignas em alguns jogos desta Copa podem assegurar-lhe mais jogos pela seleção.
 

Ramires - POSSIVELMENTE

Não foi titular com Felipão, e isso pode se tornar uma vantagem na concorrência a uma das vagas para 2018. Terá 31 anos e, se ainda estiver rendendo bem num grande clube europeu, poderá ser, na Rússia, um dos poucos brasileiros com dois Mundiais na bagagem. 
 

Hernanes - POSSIVELMENTE

Situação similar à de Ramires. Transferiu-se recentemente para a Inter de Milão, continua evoluindo na carreira. É um dos poucos meio-campistas brasileiros que reúnem faculdades equiparáveis às dos alemães. Estará com 33 anos na próxima Copa.
 

Fernandinho - NÃO

Os erros individuais do meia do Manchester City contra a Alemanha não explicam a goleada, nem anulam suas boas exibições diante de Camarões e Colômbia. Mas, como foi sacado depois da pior primeira etapa da história da seleção, tende a ficar uns tempos distante dela.
 

Hulk - NÃO

Demonstrou muito arrojo e pouca eficácia nesta Copa. Só irá à Rússia se alguém elaborar a teoria de que ter jogado num clube do gélido país pode facilitar o desempenho no Mundial a ser realizado lá.

 
Oscar - PROVAVELMENTE

Excetuando-se o jogo contra a Croácia, não brilhou no Brasil, porém mostrou um nível de comprometimento que costuma agradar aos técnicos. É bastante jovem, fez dois gols neste Mundial e exibiu capacidade para disputar outros.
 

Willian - NÃO

Ele não sabe muito bem quem é Amarildo. Infelizmente, o desconhecimento da História do futebol é comum entre jogadores brasileiros. Talvez por isso William não tenha feito história nesta Copa. Palpite, valendo um guaraná: não joga em 2018.
 

Neymar - SIM

Único personagem de 2014 que pode aguardar, sem receio, as cenas do próximo capítulo. Nome garantido para toda a longa jornada até o Mundial da Rússia.

 
Bernard - DIFICILMENTE

Bom atacante que cumpriu um ótimo biênio 2012/13 pelo Galo, precisa se afirmar no futebol europeu e superar a traumática derrota no familiar Mineirão. Caso contrário, não aparecerá no álbum em 2018.
 

Jô - NÃO

Uma das escolhas equivocadas da convocação de Scolari. Estará certamente fora da órbita do treinador incumbido de comandar a seleção nos anos vindouros.

 
Fred - NÃO

Numa entrevista concedida ao jornal O Globo, no fim de maio, Fred esbanjava otimismo. Nada, entretanto, saiu conforme o esperado. É provável que não volte a ser chamado.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Três pequenos comentários sobre o vexame

1- Felipão está na entrevista coletiva. O treinador afirma que a Alemanha passou, nas últimas duas Copas, por experiências equivalentes à que o Brasil vivencia agora. Quer dar a entender que a derrota pode ser o primeiro passo para uma eventual redenção daqui a quatro anos. A analogia me parece imperfeita. Em 2010, a Alemanha bateu Inglaterra e Argentina nas oitavas e nas quartas, respectivamente, com goleadas estupendas. Já o Brasil superou, nas mesmas fases de 2014, Chile e Colômbia, mas jogando mal, fazendo parcos gols com a ajuda da bola parada. Os fracassos recentes da Alemanha foram muito diferentes.

2- Se, em 1994, havia imensa ansiedade por título, já que o Brasil não ganhava uma Copa desde 1970, a ansiedade agora é outra. O jejum de taças não é tão grande, mas a ausência de bom futebol em Copas é longa e estarrecedora. O futebol brasileiro anseia pela antiga magia a que Schweinsteiger fizera menção dois dias antes da partida. Em 90, 94, 98, 2002, 2006, 2010 e 2014, não houve plateias embevecidas com o escrete canarinho. Houve, sim, muita gente obcecada por engordar o seu currículo, enfeitar seu portfólio, condecorar seu mandato, fosse como fosse. Enquanto a prioridade não voltar a ser praticar o jogo de forma virtuosa, não haverá futuro.


3- Na Copa Sul-Americana de 2011, a Universidad de Chile esmagou o Flamengo, no Engenhão, por 4 a 0. Atuação histórica, pondo o rubro-negro na roda. Sampaoli dirigia a equipe chilena. Luxemburgo era o técnico do Flamengo. Meses depois, o Barcelona massacrou o Santos na decisão do Mundial de Clubes. Guardiola nocauteou Muricy. Faltava apenas um dentre os três mais prestigiados técnicos do Brasil nas últimas décadas levar uma sova histórica de algum adversário estrangeiro. Não falta mais. O time de Löw destruiu implacavelmente o de Felipão.