quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Enredo plagiado

Trajetória de Ronaldinho no Flamengo lembra a de Romário


Romário não fez mil gols. A ficção que envolveu jogos pelo juvenil do Olaria e amistosos de despedida poderia ter sido evitada se, durante os quase cinco anos em que defendeu o Flamengo, o inveterado goleador tivesse levado a profissão mais a sério. Tenho a impressão de que Romário só atinou com sua relevância histórica e com o desperdício a que estava se submetendo tardiamente, percepção que o levou a tirar o máximo que podia de sua condição de veterano extra-série, na ânsia sôfrega de recuperar o tempo perdido. Não por acaso, foi até os 40 anos. Logo ele, que, ainda garoto, declarara que penduraria as chuteiras aos 27.

Houvesse, nos anos de Flamengo, mostrado a determinação que esbanjou no ano 2000, já pelo Vasco, Romário teria, possivelmente, colecionado mais títulos. Sim, porque sua passagem pela Gávea foi paupérrima nesse quesito, resumindo-se a dois estaduais e uma Copa Mercosul de cujas partidas finais não participou. Haverá quem afirme que o que mudou em 2000 não foi sua disposição, mas a qualidade dos parceiros, o que não deixa de conter uma verdade – Juninho Pernambucano, Juninho Paulista e Euller também tiveram uma virada de milênio iluminada e chegaram até a formar, com o Baixinho, a linha de frente da seleção comandada pelo interino Candinho na vitória de 6 a 0 sobre a Venezuela, válida pelas eliminatórias da Copa de 2002.  

Apesar da força desse contra-argumento, não abdico da ideia de que Romário, entre 95 e 99, contentou-se com a fama e com os lampejos de genialidade, sem se importar muito com o rumo da carreira. Os gols, ainda em boa quantidade (principalmente no campeonato estadual, do qual foi artilheiro nas edições de 96, 97, 98 e 99), mantinham sua popularidade em alta, e os sucessivos fracassos do Flamengo nessa época sempre acabavam sendo atribuídos a outrem. Luxemburgo, em 95, foi uma das vítimas, após queda de braço com o ídolo. Dezessete anos depois, vivenciou – e perdeu outra vez − disputa muito semelhante, desta feita com Ronaldinho. 

Falemos, então, do astro gaúcho. A nulidade no jogo de anteontem, contra o Vasco, contrasta violentamente com a expectativa que seu retorno ao Brasil gerou. Nos sonhos dos torcedores rubro-negros, a presença do melhor do mundo em 2004 e 2005 representava uma viga capital na construção de um time imbatível. O entusiasmo inebriou os sentidos da massa e bloqueou sua memória, impedindo-a de refletir sobre os duvidosos benefícios da vinda, em 1995, de outro melhor do mundo. Doze anos depois de ter deixado a Gávea, Romário ainda recebe parcelas mensais de uma dívida monstruosa. Além de alguns gols espetaculares, como o do elástico em Amaral, que outra recompensa a ousada contratação deixou para o clube? Aumento de torcida? Questionável. Intuo que a empolgante arrancada no Brasileirão de 2007, com Maracanã lotado e efervescente rodada após rodada, formou muito mais pequenos rubro-negros do que a ridícula campanha do campeonato nacional de 1995, por exemplo. 

No único repatriamento do futebol brasileiro à altura do de Romário, Ronaldinho podia ter incrementado o roteiro original. As parcas alterações no script, porém, têm sido para pior: o atual camisa 10 decide menos jogos, contagia menos a torcida e parece sempre tomado por um certo alheamento, uma estranha indiferença – Romário, mesmo no auge do “treinar pra quê?”, emitia opinião, reclamava, soltava os bichos, ou seja, manifestava alguma espécie de comprometimento. Já Ronaldinho não fala. Não sabemos o que pensa ou sente, porque não fala. E o vazio de seus depoimentos vem há tempos contaminando suas jogadas. 

Suponho que o resgate, ao menos parcial, da desenvoltura e do dinamismo que RG exibia em meados da década passada só viria mediante uma atenção muito maior aos cuidados com o seu corpo. Mais do que Romário em seu tempo de jogador, Ronaldinho precisa da força física. A musculatura avantajada que desenvolveu na Europa aliou-se a seu talento na missão de derrubar defesas adversárias, às vezes literalmente (veja aqui como, num embate de coxas, o dentuço leva John Terry ao chão, antes de arrematar para a rede), mas cobrou seu preço à medida que os anos foram passando. Hoje, para Ronaldinho, o aprimoramento e a manutenção da forma física devem exigir níveis de esforço nos treinos e de dedicação extra-campo muito superiores aos que ele, aparentemente, está disposto a atingir. Essas são conjecturas de um leigo no assunto, é bom frisar. O certo é que a agilidade e a rapidez do ex-barcelonista encontram-se num patamar insatisfatório.

Ronaldinho podia estar se empenhando mais. Não apenas para retribuir o vultoso investimento feito por dirigentes perdulários, não apenas para agradar aos flamenguistas, mas também para preservar algumas belas páginas por ele escritas na história do futebol. A sucessão de garranchos e rasuras pode conduzi-lo a um futuro arrependimento. Vida pacata, entrega absoluta, obstinação, treinamento a todo vapor, novo corte de cabelo – daqui a três ou quatro anos, nada disso poderá devolver-lhe a antiga capacidade. O que hoje depende de escolhas amanhã vai ser uma imposição do implacável tempo. Caso RG prossiga sendo um arremedo de craque até lá, estará ele preparado para se aposentar com o currículo maculado?

Tal como seu funcionário mais ilustre, o Flamengo precisa resolver como vai administrar seu tempo. Quantos meses ou anos ainda pretende esperar pelo soerguimento do futebol de Ronaldinho? O fim da parceria com a Traffic fez o peso das despesas com o craque crescer bastante e, por conseguinte, prejudicou ainda mais a já combalida situação econômica do clube. Se a atual diretoria se preocupasse em lançar um olhar crítico para o passado, tiraria alguma lição do período em que Romário vestiu o uniforme rubro-negro. O ídolo estava lá, mas faltaram organização, time coeso e títulos expressivos.

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